Na semana passada, numa atitude sem precedentes, três dos seis países membros do Conselho de Cooperação do Golfo - Arábia Saudita, Bahrein e Emirados Árabes Unidos - retiraram os embaixadores de Doha, para isolar o pequeno e super-rico emirado do Qatar.
Na segunda-feira, a Arábia Saudita ameaçou bloquear totalmente o vizinho por terra e mar, a menos que o emirado rompa relações com a Irmandade Muçulmana do Egipto, encerre a Al Jazeera e expulse duas prestigiadas organizações académicas de análise estratégica.
A ameaça de bloqueio por terra e mar não é levada a sério no Qatar, mas, dado que a sua única fronteira terrestre é com a Arábia Saudita, esta poderia ser facilmente encerrada, com graves consequências. Todos os bens e alimentos frescos que diariamente entram em Doha atravessam esta fronteira. Por outro lado, o emirado apenas dispõe de algumas dezenas de quilómetros de costa sem portos de águas profundas.
As contendas sobre a linha de fronteira já duram há 35 anos e só em 2001 os dois estados assinaram um acordo sobre a fronteira comum.
As últimas ameaças contra o Qatar foram proferidas pelo ministro dos Negócios Estrangeiros saudita, Saud bin Faisal, numa reunião dos chefes da diplomacia dos países do Golfo, em Riade, a semana passada, segundo testemunhos presenciais. Bin Faisal disse que uma destas acções seria suficiente se o Qatar quiser evitar "ser punido".
Por seu lado, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Qatar, Khaled Al Attiya, disse ontem que o seu país preza a independência da sua política externa, em resposta à Arábia Saudita e às monarquias do Golfo que o têm criticado.
"O Qatar não imita ninguém e isso pode causar dores de cabeça. A nossa política é baseada na abertura em relação a todos, não queremos excluir ninguém", declarou o ministro em Paris, em afirmações veiculadas pela Al Jazeera.
A Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos (EAU) e o Barhein acusam o Qatar de se ingerir nos assuntos dos vizinhos, uma situação inédita na história do Conselho de Cooperação do Golfo, que junta desde 1981 as seis monarquias árabes da região.
Mas o que levará o anão riquíssimo do Golfo a desafiar o maior e mais poderoso país árabe da região? Em comum, os países do Golfo têm a corrente islâmica sunita, com uma variante na Arábia Saudita, e o facto ineludível de nenhum deles ser uma democracia efectiva. Mesmo assim, o Qatar tem vindo a destoar entre os mais conservadores do Golfo, apoiando movimentos islamitas radicais no Egipto, na Síria e noutras partes do Médio Oriente, o que é visto com desconfiança pelos parceiros.
Além dos muitos milhões de dólares que injecta em auxílio a salafistas extremistas, o que a Arábia Saudita também faz, o Qatar dispõe de uma arma que irrita profundamente os seus parceiros, principalmente os sauditas: a Al Jazeera.
A estação de televisão põe a nu as fraquezas e debilidades dos demais países árabes, dando voz às oposições, o que viola a regra número um do Conselho de Cooperação do Golfo.
MONARQUIAS As mais conservadoras têm sido desafiadas pelo novo líder do Qatar, xeque Tamim bin Hamad al-Thani, que desde que sucedeu ao pai adoptou uma atitude ainda mais assertiva quanto à influência externa do pequeno emirado no Médio Oriente.
A surpreendente e inesperada abdicação do emir do Qatar, xeque Hamad, a 25 de Junho passado, a favor do filho, xeque Tamin bin Hamad al-Thani, ocorreu com uma pequena ajuda de Riade, para ofuscar a ascensão do Qatar na região, manobra que não terá resultado.
Há muito que os governantes dos restantes países do Golfo não escondem o desconforto com os apoios generosos que o Qatar concede a extremistas rebeldes, contrariando a tradicional hegemonia e orientação política saudita na região.
O Qatar desenvolveu-se de forma diferente dos seus parceiros seguindo a sua própria agenda diplomática. Além de se envolver na contenda entre os EUA e o Irão, o emirado tem relações comerciais com Teerão e é o único país do Golfo que possui relações em simultâneo com o Irão, a Arábia Saudita e os EUA.
Contraditoriamente, embora Doha apoie a oposição síria contra o Irão e mantenha relações estreitas com Washington, as suas relações com Teerão são o que mais enfurece a Arábia Saudita.
Os dois países tiveram uma primeira grande escaramuça fronteiriça em 1992, o que permitiu a ascensão ao trono qatari de Hamad bin Khalifa Al Thani.
As opções de política externa sauditas são diametralmente opostas às do Qatar, o que tem conduzido à deterioração das relações bilaterais. Em 2000, o príncipe coroado saudita Abdullah fez escalar a tensão ao boicotar a Cimeira dos Países Islâmicos em Doha. Em 2002, Riade chamou o seu embaixador no Qatar. A turbulência vivida nas ruas do Bahrein, entre 2011 e 2012, largamente difundida pela Al Jazeera, irritou os sauditas.
Se Riade apoiou o deposto presidente egípcio Hosni Mubarak, e agora o regime militar no Cairo, o Qatar apoiou o deposto presidente Mohamed Mursi e a Irmandade Muçulmana, que combate o novo regime militar. Ontem, Riade designou a Irmandade Muçulmana organização terrorista, agravando o conflito entre os dois estados do Golfo. Doravante, o Qatar apoia uma organização terrorista inimiga da Arábia Saudita.
No que respeita à Síria, os sauditas apoiaram a formação de dezenas de brigadas com milhares de combatentes sob uma nova estrutura liderada por Zahren Alloush, chefe do Liwa al-Islam, o grupo mais poderoso da brigada salafista.
O apoio saudita visa dar resposta à aliança de 13 grupos rebeldes na semana passada, incluindo o mais poderoso de todos, o Abhat al-Nusra, aliado da Al-Qaeda, para isolar os jihadistas que se têm mostrado mais eficazes na luta contra o regime sírio e, pelo caminho, eliminar a concorrência do Qatar nestes grupos.
Ontem, o Ministério do Interior saudita classificou dois grupos jihadistas que combatem na Síria - a Frente Nusra e o Estado Islâmico no Iraque e no Levante - como grupos terroristas. Estranhamente, o comunicado dá 15 dias aos sauditas que combatem na Síria para regressarem a casa. Um decreto real estipula que qualquer cidadão considerado culpado de combater em conflitos no estrangeiro enfrentará pena de cadeia. A ameaça parece que só se aplica aos rebeldes que combatam em grupos não apoiados por Riade.
REBELDES SUNITAS que combatem o presidente sírio Bashar al-Assad, à semelhança do Qatar, sempre contaram com o apoio da Arábia Saudita, que agora receia um ressurgimento do jihadismo radical.
As duas monarquias do Golfo vivem uma competição desenfreada por protagonismo e influência política externa e sinal disso é a denúncia feita na terça--feira pelo primeiro-ministro iraquiano, Nuri al-Maliki, que acusa os dois países de desestabilizarem o Iraque. Numa entrevista à televisão France24, Maliki disse que os dois países declararam efectivamente guerra ao Iraque.
Maliki afirma que os sauditas e o Qatar apoiam grupos rebeldes fornecendo-lhes generoso apoio financeiro. "Eles estão a atacar o Iraque através da Síria, de forma directa", disse.
O chefe do governo iraquiano também acusou a Arábia Saudita de apoiar o "terrorismo global".
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