Macky Sall explicou ao senhor do Kremlin e chefe das Forças Armadas russas, que os países africanos estão a ser vítimas da crise económica gerada pela guerra na Ucrânia, destacando a questão dos cereais e dos fertilizantes.
O líder africano, que também é Presidente do Senegal, segundo a imprensa internacional, não poupou nas palavras e disse a Putin que há milhões de pessoas em África que correm risco de vida por falta de alimentos, exortando, por isso, os países ocidentais a criarem condições para que as sanções aplicadas a Moscovo não sejam de modo a sancionar também o continente africano, que é o mais frágil elo desta complexa corrente de acontecimentos.
A resposta de Putin ficou no segredo dos deuses porque o Presidente russo não comentou a questão alimentar em África, preferindo avançar que Moscovo é há décadas, desde os tempos da antiga URSS, um parceiro especial de África, especialmente na sua luta contra o colonialismo.
No entanto, numa declaração citada pela al Jazeera a partir de uma notícia de uma tv estatal russa, o chefe de Estado russo disse a Salll e a Moussa Faki Mahamat, o presidente da Comissão Africana, que também está na capital russa, que a Federação Russa não tem qualquer responsabilidade na crise de cereais que afecta o continente africano.
Mas uma abordagem a este tema por parte do Presidente Putin ficou prometida pelos serviços de comunicação do Kremlin para mais tarde, especialmente no que diz respeito aos cereais ucranianos, esperando-se que anuncie medidas para que pelo menos os russos comecem a chegar ao mercado internacional.
Além desta parte publica da reunião, os lideres da UA e da Rússia continuaram a conversa a porta fechada, onde se espera que o problema comece a ser ultrapassado.
Começa a faltar tempo
O tempo começa a escassear para ser possível evitar a morte de milhões de pessoas nos países mais pobres do continente africano, como a Somália ou o Sudão e problemas graves, provavelmente tumultos sociais de grande dimensão, noutros, como no Egipto, Etiópia...
O tempo em falta é a "jarra de flores" no centro da mesa onde estão sentados Sall e Putin, e um bom começo foi perceber que o líder russo convidou o líder pan-africano para se sentar na mesa pequena e confortável que o senhor do Kremlin reserva aos amigos e não na mesa longa onde sentou por exemplo o francês Emmanuel Macron.
Há já vários dias que se sabia que Sall estava a caminho de Moscovo para desatar o terrível nó que se estreita a cada dia que passa no pescoço de milhões de africanos - este é um problema que é cada vez mais global, que além de África vai ainda da Ásia mais pobre à América Latina menos desenvolvida - sendo já hoje evidente que se os números de mortos no conflito no leste europeu é trágico, em África a catástrofe humanitária não é menor.
Há um registo conhecido de que, por exemplo, só na Somália centenas de crianças menores de cinco anos morreram nas últimas semanas devido à subnutrição severa e 300 mil estão em risco de vida, devido à falta de alimentos no rasto de uma profunda e prolongada seca com consequências brutalmente agravadas pela interrupção das exportações de trigo da Ucrânia e da Rússia, países responsáveis por mais de metade das importações de cereais deste país do Corno de África, região do continente onde, para já, este problema da fome assume proporções mais devastadoras.
E é isso que Macky Sall tem em mente nesta reunião, muito aguardada, com Vladimir Putin, porque é a guerra que decorre na Ucrânia que está na génese deste agravamento de um problema que já se vinha fazendo sentir com as disrupções provocadas nas linhas de abastecimento comerciais pela pandemia da Covid-19 e com as secas prolongadas.
Logo nos primeiros dias do conflito, tanto Moscovo como Kiev - a Ucrânia e a Rússia produzem mais de 35% de todos os principais cereais no mundo, especialmente trigo, milho, girassol e cevada, além dos essenciais fertilizantes, em igual percentagem - anunciaram que iriam suspender as exportações de cereais devido a razões de segurança alimentar interna.
Pouco depois, com o bloqueio naval da frota russa do Mar Negro aos portos do sul da Ucrânia, este país, mesmo que quisesse, ficou sem poder exportar via marítima os milhões de toneladas de grãos existentes nos seus silos, tendo, depois, com as minas submarinas espalhas pelas forças navais ucranianas na costa para impedir as deslocações dos navios de guerra russos, tornado essa necessidade numa impossibilidade.
Entretanto, da parte dos russos, a suspensão das exportações de trigo passou de uma opção de segurança alimentar nacional à condição de trunfo para que Moscovo possa, como tem feito, exigir o levantamento das pesadas sanções ocidentais devido ao conflito por troca com a retoma das urgentes exportações de grãos.
E quando estão a decorrer negociações de bastidores que envolvem as Nações Unidas, cujas agências humanitárias enfrentam o pesadelo de não ter onde adquirir os cereais para alimentar milhões de famintos em todo o mundo, com especial enfoque em África, envolvendo ainda outros países, como a União Europeia, que teme um aumento exponencial do fluxo migratório africano para as suas costas a sul, e a Turquia, com um papel crucial no Mar Negro devido à sua localização geográfica, nomeadamente na desminagem do Mar Negro, Macky Sall está em Moscovo porque a vida de milhões de africanos não pode esperar mais.
Os cereais russos e ucranianos têm forçosamente de começar a chegar ao continente africano.
E isso pode ser possível, até porque a Rússia não pode negá-lo, agora que está a investir como nunca na criação de laços de cooperação em vastas regiões de África, que vão do Corno de África à África Central e ao Sahel, e quando tem no continente dezenas de aliados de peso, como ficou claro nalgumas votações na Assembleia-Geral da ONU, essenciais para evitar o isolamento internacional que europeus ocidentais e norte-americanos procuram forçar.
Apesar de o Kremlin ter estado a gerir, estrategicamente, a questão da fome em África e em partes da Ásia ou na América Latina, para conseguir objectivos nacionais importantes, como a questão das pesadas sanções, a verdade é que a realidade tomou de assalto o Kremlin e Vladimir Putin vai ceder, tendo, para isso, iniciado, com o homólogo turco, Recep Erdogan, um plano onde unidades especiais do Exército da Turquia vão ajudar na desminagem do Mar Negro de forma a que os navios cerealíferos voltem a cruzar as suas águas.
E com esta ida, hoje, de Macky Sall a Moscovo, deslocação que, como o Novo Jornal noticiou, já está a ser devidamente preparada há semanas de forma a garantir o seu sucesso, provavelmente a questão estará resolvida muito em breve...
Resta saber se a tempo para evitar a morte de mais centenas ou mesmo milhares de africanos, especialmente nas regiões, como a África Oriental, já fustigadas por secas prolongadas e raramente vistas, muito por causa das fulgurantes alterações climáticas que, também, têm no continente as suas mais visíveis e trágicas consequências.
Em pano de fundo a este contexto que pode ser aterrador se não for encontrada uma solução, está o facto de a Rússia e a Ucrânia serem responsáveis por mais de 40% do trigo importado por África, sendo raros os países onde estas não são fundamentais, sendo que em países como o Senegal ou a Tanzânia, essa percentagem sobe acima de 60% e no Egipto para os 80% enquanto noutros, como a Somália e o Benim, atinge os 100 por cento. Há já mesmo países que declararam situações de emergência alimentar, como é o caso do Chade, que depende em grande medida dos cereais dos dois países beligerantes.
Embora o trigo seja o cereal mais importante neste contexto, o girassol e a cevada, sem esquecer o milho, têm nestes países dos seus principais celeiros. Os fertilizantes, embora menos alvo de atenção, tê igual impacto, porque são igualmente estes dois países os seus principais exportadores e a sua falta leva a uma acelerada redução das produções nacionais em todo o mundo mas com maior intensidade, também, em África e na Ásia.
Só o trigo, o que é partilhado em maior ou menor grau mas com escassa diferença por todos os outros grãos, subiu mais de 45 por cento em três meses, passando a tonelada a custar perto de 500 dólares norte-americanos.
Neste encontro, segundo fontes do Governo senegalês citadas pelas imprensa do país, os dois líderes vão trocar impressões sobre os efeitos da guerra no continente africano e a questão do acesso aos cereais será o tema principal, enquanto fontes do Kremlin, citadas pelas agências, enfatizam que a conversa versará questões de cooperação humanitária e o diálogo político entre a Federação Russa e a União Africana.
A pairar sobre este dia em Moscovo vão estar os mais de 16 milhões de pessoas em risco de morrer à fome no Corno de África e os mais de 40 milhões em risco iminente de fome severa, segundo o Programa Mundial da Alimentação da ONU.