Ao longo da história do pensamento político e económico, a Quimera passou a simbolizar construções intelectuais e narrativas públicas que aparentam coerência, mas colapsam quando confrontadas com a realidade empírica. É neste sentido clássico que a metáfora se aplica ao discurso oficial sobre a política de substituição das importações em Angola, promovido pelo Presidente João Lourenço e operacionalizado pela Equipa Económica.
Segundo narrativa do Executivo - a cabeça de leão - a redução das importações de bens essenciais, em particular alimentares, constitui prova do sucesso da política de diversificação da economia. Importa-se menos porque se produz mais; logo, estaríamos perante uma substituição eficaz das importações. Ora, a simplicidade do argumento é politicamente conveniente e comunicacionalmente eficaz. Contudo, da perspectiva da teoria económica, trata-se de uma inferência frágil. Reduzir importações não é, por definição, sinónimo de substituição bem-sucedida. Para que tal conclusão fosse defensável, seria necessário observar simultaneamente três condições: um aumento significativo da produção interna sustentado por ganhos de produtividade, uma melhoria - ou pelo menos estabilidade - da disponibilidade per capita de bens essenciais e uma dinâmica de preços compatível com ganhos de eficiência e bem-estar. Quando estes critérios são analisados em conjunto, a narrativa triunfal começa rapidamente a revelar fissuras.
Ora vejamos,
Entre 2017 e 2024, a produção nacional de frango mais do que duplicou, passando de cerca de 27 mil para aproximadamente 58 mil toneladas, enquanto as importações caíram cerca de 50%. Em termos relativos, o peso da produção nacional face às importações aumentou de cerca de 11% para aproximadamente 46% no período. No milho, a produção cresceu de cerca de 2,2 milhões para 3,4 milhões de toneladas, ao passo que as importações recuaram cerca de 20%, elevando o rácio produção/importações de aproximadamente 41% para mais de 76%. Estes números mostram que houve, de facto, reforço da capacidade produtiva interna e uma redução da dependência externa em termos absolutos. A cabra cresceu - e isso não deve ser ignorado. O problema é que, mesmo assim, não cresceu o suficiente para sustentar e garantir o sistema de segurança alimentar nacional.
A fragilidade da narrativa torna-se ainda mais evidente quando se introduz um factor sistematicamente omisso no discurso da Equipa Económica: o crescimento demográfico. Entre 2017 e 2024, a população aumentou cerca de 23%, mantendo taxas superiores a 3% ao ano. Num país com elevada elasticidade do consumo em relação ao rendimento, qualquer avaliação séria da política da segurança alimentar deve ser feita em termos per capita. Quando essa correcção elementar é aplicada, a ilusão de progresso dissipa-se. Apesar de um aumento da produção nacional e da redução das importações, o consumo aparente per capita caiu de forma expressiva. No caso do frango, passou de cerca de 9,4 kg por pessoa/ano, em 2017, para aproximadamente 5 kg em 2024 - uma queda próxima de 50%. No milho, o consumo aparente per capita recuou de 260 kg para 213 kg por pessoa, uma redução de quase 20%. Produz-se mais, importa-se menos, mas cada angolano consome menos. A cabra cresce, mas o rebanho cresce mais depressa - e, consequentemente, alimenta-se pior. Pasme-se!
Importa sublinhar que esta análise incide apenas sobre dois produtos - frango e milho - não por serem excepcionais, mas precisamente por serem representativos. Ambos integram a cesta básica definida pelo Executivo do Presidente João Lourenço, têm peso relevante no consumo das famílias e são frequentemente usados como vitrine do sucesso da política de diversificação da economia. A escolha destes produtos permite isolar com clareza os mecanismos em funcionamento. Contudo, o resultado observado não é uma excepção. Pelo contrário, o padrão repete-se nos restantes bens da cesta básica: algum crescimento da produção nacional, redução das importações em termos absolutos e, quando corrigido pelo crescimento demográfico, pelos preços e pelo rendimento real, uma deterioração do consumo per capita. A Quimera muda de rosto conforme o produto analisado, mas a incoerência estrutural permanece.
Chegamos, assim, à cauda da serpente, a parte mais tóxica da narrativa da Equipa Económica. A redução das importações não resulta primordialmente de ganhos sustentados de produtividade nem de uma política industrial eficaz orientada para a competitividade da produção nacional. Resulta, sobretudo, de um constrangimento externo bem conhecido: o acesso limitado às divisas. Angola importa menos porque pode pagar menos em moeda estrangeira. A escassez de dólares americanos, o racionamento implícito no mercado cambial e as fragilidades do sistema de pagamentos junto dos mercados internacionais impõem um tecto à capacidade de importar bens essenciais. Converter esta limitação financeira num indicador de sucesso estratégico é um exercício notável de criatividade política e um fracasso analítico evidente da Equipa Económica. Confunde-se escassez com eficiência e restrição cambial com virtude económica.
As consequências desta dinâmica são claras. A primeira é a inflação, em particular a de bens alimentares, persistentemente elevada. A teoria económica é inequívoca: quando a oferta efectiva é comprimida, num contexto de forte crescimento populacional e procura relativamente inelástica ao rendimento, os preços sobem. Se a substituição de importações estivesse a ocorrer de forma eficaz, seria expectável alguma pressão descendente sobre os preços ou, pelo menos, estabilização. O facto de se observar exactamente o contrário deveria aconselhar maior prudência no discurso ilusório da Equipa Económica. A segunda consequência é o empobrecimento real do povo - o Patrão! Com rendimentos reais em queda e preços mais elevados, o ajustamento faz-se inevitavelmente pelo consumo: come-se menos, come-se pior e de forma menos diversificada. Esta realidade raramente surge nos relatórios e documentos oficiais, mas é sentida diariamente pela população a mesa.
O problema central desta Quimera não é apenas técnico; é profundamente político. Ao apresentar a redução das importações como prova de sucesso, a Equipa Económica constrói um relato autoindulgente que desincentiva o debate sério sobre as reformas verdadeiramente necessárias: ganhos sustentados de produtividade, captação de investimento directo estrangeiro e nacional para sectores com vantagens competitivas comprovadas, melhoria do processo de logística e de transporte, acesso ao financiamento e uma política cambial que deixe de estrangular a economia real. Celebrar restrições como conquistas pode ser conveniente no curto prazo, mas é estruturalmente nocivo no longo prazo.
Na mitologia, a Quimera foi derrotada quando deixou de ser temida como um monstro invencível e passou a ser compreendida como aquilo que realmente era: uma criatura incoerente e vulnerável pelas suas próprias contradições. O mesmo se aplica à política de diversificação da economia do Executivo. Enquanto Angola continuar a confundir falta de divisas com substituição de importações, continuará a produzir discursos robustos e resultados frágeis. As importações diminuíram, é verdade - mas não diminuíram porque o País passou a produzir o suficiente, e, sim, porque passou a poder importar menos. Dar a isto o nome de sucesso é apenas atribuir um rótulo elegante a um problema real.
Como advertia Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo, escritor e teórico político franco-suíço do Iluminismo, "quando o governo engana o povo, rompe-se o pacto que sustenta a autoridade legítima, e a obediência transforma-se em revolta". Ignorar esta lição - política e económica - é persistir numa Quimera que, mais cedo ou mais tarde, será inevitavelmente desmascarada pela realidade.
*Professor Auxiliar de Economia e Investigador
Business and Economic School - ISG
Bibliografia
• Relatórios De Resultados dos Anos Agrícolas 2017-2018 e 2023-2024, Ministério da Agricultura e Florestas

