Múltiplos focos de resistência ao avanço das tropas enviadas por Abiy Ahmed estão a fazer perigar toda uma vasta região que abrange não só a Etiópia, o segundo país mais populoso do continente, com 104 milhões, apenas atrás da Nigéria, com perto de 200 milhões, mas também a Eritreia e o Sudão, levaram a que a força aérea fosse chamada para lançar vários raids sobre Tigray como forma de dissolver a resistência local.

Em causa está um braço-de-ferro com a Frente Popular de Libertação de Tigray (TPLF, na sigla em inglês), com uma clara ameaça de guerra civil generalizada devido à tentativa de Abiy Ahmed anular esta resistências independentista e quando a comunidade internacional se desdobra em manobras para aliviar a tensão e reduzir as probabilidades de um conflito que pode e tem potencial para alastrar aos países vizinhos e ao resto da Etiópia.

A campanha militar de Abiy Ahmed contra o TPLF já dura há cerca de uma semana e coincidiu com um momento em que o mundo estava focado no desenrolar das eleições nos EUA, o que permitiu que só dois dias depois, com excepção de alguns media mais atentos, o assunto merecesse o destaque que está agora a ter.

A situação tensa não mostra sinais de poder desanuviar porquanto o Governo de Adis Abeba persiste em reajustar as suas chefias militares e de intelligentsia para a guerra e não para a paz, como têm estado a sublinhar alguns analistas, especialmente com a substituição dos chefes das forças armadas, dos serviços secretos e da política externa, não deixando dúvidas de que o Prémio Nobel da Paz está apostado em acabar com a resistência cabal na região de Tigray, uma das mais importantes do país, onde estão cerca de 1/10 da população etíope.

As Nações Unidas já vieram alertar para a existência de mais de 9 milhões de pessoas em risco de deslocação forçada das suas terras e casas, criando condições para que surjam problemas de fome e o risco de surgirem novos campos de refugiados nesta parte do continente africano, tendo começado já a haver problemas por causa das restrições imposta pelo estado de emergência em Tigray em relação ao transporte de alimentos e medicamentos.

Recorde-se que a região de Tigray e os seus dirigentes foram responsáveis pelo poder na Etiópia durante décadas até à chegada de Abiy Ahmed ao poder, em 2018, contando com uma antiga reivindicação autonomista e poderosas milícias armadas, sendo que é ainda um problema para Adis Abeba o facto de em Tigray estar sedeado o comando militar norte das Forças Armadas etíopes, com uma esmagadora maioria de elementos locais, sendo que a Etiópia é, efectivamente, uma das maiores potências militares em África.

Para procurar abrir caminho para a paz, as Nações Unidas e a União Africana estão em permanente contacto e o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, esteve em conversações com o líder da Comissão Africana, Faki Mahamat, e o primeiro-ministro do Sudão, Abdalla Hamdok, o líder actual do IGAD, a organização regional para o desenvolvimento, com o receio de um alastramento do conflito de Mekelle, a capital de Tigray, à região envolvente - Sudão e Eritreia - claramente em cima da mesa.

Recorde-se que a Etiópia esteve durante anos em guerra - finais da década de 1990 - com a Eritreia devido a um disputa territorial, com o foco central na actual região em conflito, Tigray, da qual resultaram milhares de mortos acabando quase num impasse, ainda com muitas feridas por sarar, sendo que apenas em 2018 foi assinado o decisivo acordo de paz.

Esta possibilidade resulta ainda mais séria porque o Governo da Eritreia, chefiado pelo Presidente Isaias Afwerki, do outro lado da fronteira, a Norte, é um claro inimigo da Frente Popular de Libertação de Tigray e a possibilidade de criar uma frente a norte para apoiar o Governo de Adis Abeba pode ser irresistível se em causa estiver o esmagamento da TPLF.

A outra frente de "batalha" da Etiópia - a barragem no NIlo

A maior barragem do continente africano, e uma das maiores do mundo, localizada no Rio Nilo, na Etiópia, que vai começar a produzir electricidade ainda durante o ano de 2020, pode ser em breve mais uma dor de cabeça para o Conselho de Paz e Segurança (CPS) da União Africana (UA).

Sudão, Egipto e Etiópia começaram a deixar subir a tensão com o avançar da construção da barragem baptizada de "Grande Renascença" por representar um possível novo renascimento para esta parte de áfrica.

O acumular de tensão emerge pela disputa dos três países da bacia do Nilo, o gigante rio que atravessa o nordeste africano que nasce nas montanhas entre o Burundi e o Ruanda e avança deserto do Saara dentro até se perder nas areias egípcias junto ao Mediterrâneo, passando por países como a Tanzânia, Quénia, República Democrática do Congo, Burundi, Sudão, Sudão do Sul, Etiópia e Egipto.

Esta barragem, de mais de 5 mil milhões de dólares está a ser alvo de uma disputa entre os Governos de Adis Abeba, Cairo e Cartum, nomeadamente no que exige em esforço e cedência no acesso à água até que o gigantesco reservatório, mais vasto que algumas das maiores cidades do mundo, esteja totalmente cheio.

Para garantir que os três países chegam a bom porto nas conversações, o Banco Mundial e os EUA enviaram delegações de topo para acompanhar as negociações e eventuais faíscas que possam atear o fogo.

O problema é que esta gigantesca represa, para encher, vai diminuir o fluxo de água para os dois países a jusante, Egipto e Sudão, que temem ser prejudicados na sua agricultura, indústria e ainda no acesso a água potável para as populações - 90% no caso do Egipto -, sendo que o Nilo, no caso do país dos faraós, é fundamental para a sua fluorescente indústria turística, sem falar no facto de a sua estratégica barragem de Assuão ser alimentada por este mítico curso fluvial.

Depois de estar em pleno funcionamento, esta barragem, situada na região de Benishangul-Gumuz, perto da fronteira com o Sudão, vai gerar 6.000 MWe, o que vai fazer da Etiópia o maior exportador de electricidade do continente.

E é por isso que a Etiópia tem pressa em encher a represa gigante, e pretende fazê-lo em seis anos, quando os vizinhos Sudão e Egipto não aceitem menos de 10, porque essa diferença vai permitir um maior fluxo contínuo de água no Nilo que chega a estes dois países, o que está no cerne das tensões que se vêm acumulando nos últimos anos, podendo mesmo vir a ser um dos focos de tensão mais grave em África, aumentando muito nos últimos meses a possibilidade de escaramuças militares.

Como relata a imprensa internacional, o Egipto já admite mesmo uma situação de grave crise no abastecimento de água em 2025, exigindo que os seus direitos "históricos" sobre o Nilo sejam respeitados.

E o Governo de Adis Abeba, através do seu primeiro-ministro e prémio Nobel da Paz, Abiy Ahmed, já denunciou as ameaças veladas do Cairo, garantindo que nenhuma força poderá obstaculizar a Etiópia de ter a sua barragem a funcionar em pleno.

Citado pelas agências, Abiy Ahmed já disse mesmo, isto ainda em finais de 2019, que se for preciso "avançar para a guerra", a Etiópia terá em muito pouco tempo "milhões prontos para defender os interesses do país".

Apesar de estarem e curso há mais de um ano intensas negociações, estas parece terem voltado a falhar depois de os governos dos três países, Egipto, Sudão e Etiópia, terem reunido ao nível ministerial sem que, como revela a al Jazeera, tenha sido avançado um centímetro para garantir que o processo não vai descambar.