Em causa, do ponto de vista estratégico, para o Governo chinês, está garantir que o território, que entre 1842 até 1997 esteve sob administração de Londres, não resvala para uma situação de tudo ou nada, como a que transformou Taiwan num território administrativamente rebelde embora parte da China nos "mapas" de Pequim, na decáda de 1950, ou ainda outro drama de proporções internacionais como o que ocorreu, em 1989, na Praça de Tiananmen, e que ainda hoje é apontado como exemplo da disponibilidade para a brutalidade do regime chinês quando abanam os seus alicerces.
Este movimento contra a "opressão" de Pequim agigantou-se com a decisão do Governo "especial" de Hong Kong em permitir que crimes comuns cometidos no território pudessem ser julgados em tribunais do continente, o que gerou uma revolta popular que dura até hoje porque esse passo foi visto como uma porta aberta para que a região perdesse a sua autonomia e "liberdade".
Liberdade que é exactamente aquilo que os milhões de habitantes de Hong Kong querem garantir, com sucessivas manifestações nas ruas, tendo, em algumas delas, superado o milhão e meio de pessoas em protesto.
Na segunda-feira teve lugar um dos momentos mais sensíveis, quando milhares de pessoas invadiram o aeroporto Chek Lap Kok, obrigando ao cancelamento de todos os voos.
O mesmo aeropoprto, que é o mais movimentado do mundo no que diz respeito ao transporte de carga, voltou a ser fechado hoje, numa atitude que revela como nenhuma outra o que está em causa, visto que o aeroporto de Hong Kong é ainda o 8º maior do mundo, com quase 75 milhões de passageiros por ano
Já hoje, segundo as agências internacionais, muitos desses manifestantes voltaram ao aeroporto, todos vestidos de negro, que é a cor que optaram para simbolizar o seu descontentamento com as tentativas de Pequim em cercear as liberdades garantidas pelo estatuto especial de Hong Kong.
"Ergue-te Hong Kong, ergue-te pela liberdade", gritaram milhares de cidadãos durante este e outros protestos, que, situação admitida já oficialmente pelo Governo de Pequim, estão a colocar, como noticiaram os media oficiais chineses, Hong Kong numa situação "de enorme seriedade", considerando a agência Xinhua que "o momento é crítico" para o futuro desta região administrativa especial da República Popular da China.
O momento é tão dramático que o porta-voz do Executivo de Pequim já veio dizer que é bom que a calma demonstrada pelas autoridades não seja confundida com ausência de decisão, porque qualquer movimento anormal em Hong Kong será imediatamente terminado, tendo alguns media ocidentais divulgado imagens de um forte contingente militar a dirigir-se, ainda no continente, para as "portas" de Hong Kong.
Na ideia de todos está não só a revolta de Taiwan na década de 1950, cuja génese resulta de circunstâncias distintas mas que culminou na efectiva separação do território da China continental, embora sem o reconhecimento oficial da maior parte dos países nas Nações Unidas, mas especialmente o episódio trágico de Tiananmen, em 1989, onde o Exército chinês esmagou uma tentativa de revolta democrática, principalmente estidantil, com recurso a tanques de guerra e cujo número de mortos permanece um mistério até hoje mas comummente aceite que foram na ordem dos milhares.
Para lidar com este levantamento popula em Hong Kong, Pequim já disse que existem sinais de terrorismo por detrás dos manifestantes e estão, segundo noticiaram já as agências internacionais a partir de dados fornecidos pelos media oficiais chineses, a enviar meios consideráveis para as fronteiras do território para eventualmente esmagarem as reivindicações dos milhões de cidadãos de Hong Kong que não se revêm no regime autoritário vigente na China continental.
Carrie Lam, a chefe do governo local, já veio mesmo a terreiro admitir que o que está a acontecer tem todo o potencial para "levar Hong Kong para o precipício", num claro aviso aos manifestantes de que a situação começa a desagradar de forma séria aos dirigentes do Partido Comunista Chinês (PCC), que é quem lidera o país.
Foi, recorde-se, todavia, Carrie Lam a autora da proposta que deveria permitir o julgamento de cidadãos do território em tribunais comandados por Pequim, e que esteve na génese dos vultuosos protestos que a obrigaram a retirar o documento antes de ser aprovado.
Só que as manifestações não pararam e evoluíram mesmo para uma exigência ainda maior: a implementação de um regime onde vigore o sufrágio universal e que a actual administração se demita de imediato, bem como a punição exemplar dos opressores e a libertação dos presos políticos, antes que termine o período de 50 anos de liberdade garantida no acordo assinado entre Londres e Pequim em 1997 para o retorno do território à "mãe" China.
Pequim recorre ao furor nacionalista
Entretanto, numa reportagem, o jornalista João Pimenta, da Lusa, relata que uma intensa campanha mediática visando difamar e comprometer os manifestantes em Hong Kong ganhou forma, nos últimos dias, no continente chinês, onde a informação é controlada pela propaganda do regime, sugerindo que Pequim prepara uma intervenção.
Inicialmente, as autoridades chinesas optaram por censurar qualquer informação sobre os protestos, que decorrem há dez semanas, mas, nos últimos dias, optaram por caracterizá-los como tumultos violentos, perpetuados por mercenários pagos por forças externas.
Na semana passada, uma jornalista da agência noticiosa oficial Xinhua visitou Hong Kong e descreveu a cidade como "envolta num terror negro". A cobertura diária na imprensa chinesa mostra imagens de manifestantes a atirar tijolos, provocar a polícia e a cercar esquadras.
Os manifestantes são descritos como "radicais" e "bandidos", os polícias como "heróis" - imagens de alegados abusos pelas autoridades são omitidas. As dezenas de homens armados com barras de ferro que, em Julho passado, agrediram violentamente manifestantes pró-democracia, num ataque atribuído a tríades mafiosas controladas por Pequim, foram descritos como "patriotas".
Uma notícia difundida na segunda-feira, e que surge no topo das sugestões do motor de busca chinês Baidu, líder no país, - o Google está bloqueado na China - informa que os manifestantes recebem, por dia, 8.000 dólares de Hong Kong por participarem ou 50.000 dólares de Hong Kong, caso matem um polícia.
A notícia, publicada pela edição em língua chinesa do Global Times, jornal oficial do Partido Comunista (PCC), não refere a origem do financiamento, mas a imprensa de Pequim tem acusado Washington de fomentar a insurreição.
"Trata-se, afinal de contas, do trabalho dos Estados Unidos", disse Hua Chunying, porta-voz do ministério chinês dos Negócios Estrangeiros, na semana passada, sem apresentar qualquer evidência.
A notícia do Global Times surgiu também no mesmo dia em que o Governo chinês afirmou que há "sinais de terrorismo" nos protestos antigovernamentais em Hong Kong.
"Os manifestantes já se converteram num grupo terrorista", comentou também um dos internautas. "Só com uma intervenção militar é que é possível conter o terrorismo", escreveu outro.
A imprensa oficial chinesa tem também apelado ao público do continente para ajudar a proteger a soberania da China, encorajando uma forte reacção nacionalista.
Em 03 de Agosto passado, depois de os manifestantes retirarem uma bandeira chinesa do mastro e a atirarem à água no icónico porto de Vitória, a televisão estatal chinesa CCTV lançou uma campanha de apoio à bandeira do país, com milhões de internautas a fazerem "gosto" na imagem.
No país mais populoso do mundo, com cerca de 1.400 milhões de habitantes, a narrativa é controlada pelo PCC, cujo Departamento de Propaganda emite directrizes para os órgãos de comunicação nacionais.
Vários órgãos de comunicação ou portais estrangeiros, incluindo Facebook, Twitter ou Instagram, estão banidos da rede chinesa, a maior do mundo, com cerca de 710 milhões de utilizadores.
A educação patriótica, reforçada após o movimento pró-democracia da Praça Tiananmen, esmagado na noite de 03 para 04 de junho de 1989, quando tanques do exército foram enviados para pôr fim a sete semanas de protestos, ajudarão também ao furor nacionalista.