O M23, de origem tutsi ruandesa e apoiados pelo Ruanda, como o demonstra uma investigação das Nações Unidas de 2022, estão a sair dos acantonamentos e a pressionar a força de interposição regional enviada para estabilizar a cobiçada região do leste congolês devido às riquezas do seu subsolo.
Organizada no âmbito do esforço da Conferência dos Grandes Lagos (CIRGL), liderada pelo Presidente angolano, João Lourenço, e pela Comunidade da África Oriental (EAC), a força militar de estabilização já no terreno há mais de um ano, conta com unidades de Angola (500 militares), Quénia e Uganda, às quais se junta agora um contingente da SADC, que agrega unidades da África do Sul, a mais relevante, do Malawi e da Tanzânia.
Este contingente, composto por 2.900 militares, vai, segundo a imprensa sul-africana, chegar ao leste da RDC, à província do Kivu Norte, para apoiar directamente no controlo do M23, que está a aumentar os confrontos com as forças locais das FARDC e do contingente internacional da CIRGL e da EAC, numa demonstração clara de que já não estão a cumprir os acordos de paz assinados em Nairobi e em Luanda. (ver links em baixo nesta página)
Esta força sul-africana chega ao leste congolês, segundo o Governo de Pretória, no âmbito das "obrigações da África do Sul assumidas enquanto membro da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC)", organização que actua em coordenação com a EAC e a CIRGL.
O objectivo cimeiro da força sul-africana é ajudar o contingente já no local e as forças da RDC a impedir o avanço do M23 sobre a capital do Kivu Norte, Goma, que voltou a estar na mira dos guerrilheiros maioritariamente de origem étnica Tutsi ruandesa e que o Governo congolês do Presidente Flexi Tshisekedi não se tem poupado a esforços para ligar ao apoio directo, mas camuflado, do Governo ruandês de Paul Kagame.
Apesar de Kagame e o seu Executivo negarem repetidamente qualquer apoio ao M23, essa ligação foi demonstrada num relatório de investigação elaborado pelas Nações Unidas em 2022, justificando a atitude de Kigali com a procura de condições de esconder com os actos de guerrilha a exploração ilegal de recursos naturais do leste da RDC, nomeadamente o estratégico coltão, diamantes e ouro.
Este avanço da África do Sul é acompanhado por forças do Malawi e da Tanzânia, depois de tal ficar acordado numa cimeira da SADC que teve lugar em Dezembro do ano passado, em Windhoek, Namíbia, onde foi criada a SAMIDRC, a força austral para a estabilização do leste da RDC, na sua sigla em inglês.
Contexto
As localidades do Kivu Norte, província do leste da República Democrática do Congo, que já deviam estar sem rebeldes do M23, se fossem cumpridos os vários acordos, com destaque para o Acordo de Luanda, assinado em Novembro de 2022, bem mais importante pelo envolvimento de diversos Chefes de Estado e organizações regionais, continuam ensombradas pelas presença desta guerrilha apoiada pelo Ruanda, como o prova um relatório das Nações Unidas.
Face a esta escassa ou nula evolução no terreno do que está contido no documento assinado na mini-Cimeira de Luanda de 23 de Novembro de 2022, que os rebeldes começaram por dizer que não iriam cumprir, os Estados Unidos voltaram a fazer um veemente pedido ao Ruanda para acabar com o "apoio" ao M23, e à RDC para extinguir o apoio à guerrilha contrária ao regime ruandês, as FDLR (Forças Democráticas de Libertação do Ruanda), como o Governo de Kigali tem insistido que existe.
Na denominada mini-Cimeira de Luanda ficou estipulado, no documento assinado por todas as partes, que os rebeldes do M23 seriam sujeitos a um calendário concreto para retirarem das áreas tomadas de forma violenta no leste congolês até 15 de Janeiro deste ano.
Este encontro na capital angolana contou com a presença dos Presidentes da RDC, Félix Tshisekedi, e do Burundi, Évariste Ndayishimiye, enquanto líder da Comunidade de Países do Leste africano (EAC), o ministro dos Negócios Estrangeiros do Ruanda, Vincent Biruta, além do anfitrião, João Lourenço, que lidera a Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL).
Por detrás de todo este recrudescer da violência nas já de si massacradas províncias do leste congolês, Kivu Norte, Kivu Sul e Ituri, onde se desenrola em trágico contínuo, desde a década de 1990, uma tempestade de violência protagonizada por dezenas de grupos guerrilheiros, criados no húmus do genocídio de 1994 no Ruanda, está o apoio, assim o diz o Governo de Kinshasa, o apoio do Exército e dos serviços secretos ruandeses ao M23, com o objectivo de manter a região desestabilizada.
Desde finais de 2021 que se assiste a uma reorganização do Movimento 23 de Março, abreviado para M23, com moderno equipamento militar, com avanços sólidos na região, assumindo o controlo de dezenas de localidades de uma das mais ricas zonas do mundo em recursos minerais estratégicos - coltão, cobalto, terras raras, ouro, diamantes... -, tendo em meados de 2022 acontecido uma aceleração vertiginosa das acções destes rebeldes.
O M23, tal como outras guerrilhas, nasceu no seio da etnia Tutsi ruandesa, o alvo referencial do genocídio de 1994 perpetrado pela maioria Hutu, e hoje é acusado pelo Governo de Tshisekedi de estar a ser financiado e a contra com apoio logístico do Ruanda, embora não seja muito claro o porquê de tal apoio, que é refutado pelo Presidente ruandês, Paul Kagame, embora este se tenha comprometido com Tshisekedi e João Lourenço a usar a sua influência junto dos lideres da guerrilha para os conduzir a negociações.
Uma das teses mais sólidas para justificar o "apoio" de Kigali aos M23 na sua "conquista" de territórios no leste da RDC - os guerrilheiros dizem que se estão a defender das milícias de origem Hutu - é que, com a sua presença, as forças congolesas e as autoridades se mantêm afastadas da área onde, por isso, mais facilmente, são explorados os seus recursos naturais, nomeadamente o coltão, que os relatórios de organizações internacionais, apontam como facto que o Ruanda é hoje um exportador deste minério essencial na economia mundial, especialmente do universo das novas tecnologias, sem que tal exista no seu subsolo, pelo menos em quantidades comerciais.
Agora, quando a generalidade dos prazos definidos no acordo de Luanda, um roteiro com etapas bem salientes para cumprir por parte dos rebeldes, a EAC e o Governo de Kinshasa estão a, de novo, acusá-los de não estarem a sair das localidades como previsto, dando como exemplo as localidades de Rumangabo e Kishishe, mo território de Rutshuru, no Kivu Norte.
Segundo a rádio das Nações Unidas na RDC, que faz parte da MONUSCO, uma das mais pesadas missões da ONU em todo o mundo, a Radio Okapi, a EAC tem oficiais no terreno de forma a verificar o cumprimento dos acordos, nas próximas horas, podendo mesmo começar já nesta sexta-feira.
Algumas fontes locais citadas pelos media congoleses dizem que a lentidão do processo de retirada é ma manobra táctica dos rebeldes do M23 que lhes permite, na verdade, manter as áreas que consideram essenciais, enquanto vão fazendo de conta que estão a cumprir o Acordo de Luanda.
As razões de fundo para este conflito
O leste do Congo é uma das regiões mais ricas do mundo em recursos naturais estratégicos, desde logo o coltão e o cobalto, dois minerais incontornáveis para as novas industrias tecnológicas e aeronáutica de ponta, sem as quais toda a parafernália tecnológica de comunicações, como os simples smartphones, não existiria tal como a conhecemos, sem o coltão, e a indústria que exige a aplicação de baterias, como a dos automóveis eléctricos, seria algo muito distinto do que é hoje sem acesso ao cobalto, sendo ainda abundantes as denominadas terras raras, com igual uso nas novas tecnologias, o ouro ou os diamantes.
E a piorar o cenário, como combustível para esta fogueira, a RDC possui as maiores reservas do mundo de coltão e cobalto, mais de 80% de um e de outro, quase em exclusivo presentes no leste do país, sendo esta geografia geradora de grandes "apetites" pelas multinacionais do sector, que, segundo ONG"s internacionais de defesa dos Direitos Humanos, usam as guerrilhas para explorar sem controlo estas jazidas, afastar populações ou aterrorizar as forças do Estado que procuram chegar a estas "terras de ninguém" assoladas pela mais hedionda violência.
Mas também os vizinhos, como o Ruanda, desde sempre exploram estas riquezas de forma encapotada, porque, como chegou a ser denunciado publicamente por organizações internacionais, não existem depósitos de coltão no país mas este aparece como um dos grandes exportadores mundiais deste minério estratégico.
A par da questão dos recursos naturais congoleses nos Kivu Norte e Sul, existem ainda questões de natureza territorial com potencial incendiário na região, desde logo por razões étnicas, ou de sobrepopulação, sendo o Ruanda o que apresenta a maior densidade populacional na África continental, sendo apenas ultrapassado pelas Maurícias e Mayotte, pequenas ilhas francesas situadas entre Madagáscar e Moçambique, no Índico.
Este cenário conduz, desde logo, a uma situação em que o Ruanda, um país pequeno, hiperpovoado - mais de 400 pessoas por km2 -, mas um dos mais ricos e desenvolvidos em África do ponto de vista organizacional e económico, se vê fortemente tentado, segundo alguns analistas, a alargar a sua territorialidade para oeste, onde o leste congolês é hoje uma espécie de terra de ninguém, com fraca presença do Estado e dominado por guerrilhas e interesses obscuros ligados às suas riquezas naturais.
É de ter ainda em consideração que o Ruanda foi palco, em 1994, de um trágico episódio, conhecido como o genocídio ruandês, em que mais de 800 mil tutsis, a minoria étnica, foram massacrados com extrema violência, pela maioria Huto.
Este episódio histórico trágico levou a que largas centenas de milhares de ruandeses procurassem segurança na vizinha RDC, onde surgiram, nesse momento, algumas das guerrilhas mais activas, como a Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) que vingou até hoje no leste congolês, sendo, juntamente com a ADF ugandesa, de génese islâmica, actualmente sob domínio do estado islâmico, e o M23, as mais sanguinárias.
Ver links em baixo nesta página para revisitar a cobertura do Novo Jornal à persistente crise no leste da RDC