Após o anúncio por Tshisekedi que tinha accionado o mecanismo constitucional de nomear um "informador" para procurar uma nova relação de forças no Parlamento para sustentar um novo Executivo, ocorreram incidentes graves em Kinshasa entre apoiantes de um lado e do outro e no Parlamento, os eleitos próximos de Kabila destruíram vários equipamentos do interior do edifício parlamentar.
Félix Tshisekedi ganhou as eleições presidenciais de Dezembro de 2018 mas a sua coligação perdeu as legislativas, deixando a Assembleia Nacional com uma forte maioria ligada a Kabila, 300 dos 500 lugares no Parlamento, obrigando a profundas negociações que permitiram ao antigo Presidente "mandar" no Governo, onde colocou homens da sua confiança nas principais pastas, o que os analistas, de imediato, previram que seria uma solução precária e destinada a cair em pouco tempo, como se está a verificar.
O que Tshisekedi pretende, sabendo que jamais vai poder contar com uma coligação forjada cm a actual composição parlamentar, é esgotar oficialmente os procedimentos constitucionais, cerca de 60 dias para que o seu "informador" tente encontrar uma solução impossível, e depois convocar eleições legislativas antecipadas, dissolvendo a Assembleia Nacional.
Face a este cenário, António Guterres lançou m veemente apelo "a todos os actores políticos" para que optem por resolver as suas diferenças por via do diálogo e recorrendo aos mecanismos constitucionais, porque "é esse o interesse do povo congolês".
Guterres disse ainda que a ONU vai continuar a apoiar os esforços para a construção de uma RDC estável e com instituições do Estado sólidas e funcionais que permitam saúde e segurança como base para o desenvolvimento económico e social.
O histórico
Depois de meses de crescente tensão entre a Frente Comum para o Congo, de Joseph Kabila, e a Coligação para a Mudança, que sustenta o actual Presidente, Félix Tshisekedi, o turbulento vizinho angolano do norte pode precisar de novo de uma intervenção política ao mais alto nível envolvendo Luanda para evitar o descalabro em Kinshasa.
Com a possibilidade cada vez mais forte de a RDC ir de novo a eleições, como o Presidente Félix Tshisekedi anunciou no passado Domingo em Kinshasa, através da ameaça de dissolução da Assembleia Nacional, durante uma comunicação ao país transmitida pela Rádio-Televisão Nacional Congolesa (RTNC), o Congo-Democrático está a entrar, de novo, num período que pode ser de grande instabilidade se não for encontrada uma solução sólida para sustentar a governação deste gigante africano com mais de 80 milhões de habitantes, com uma história repleta de conflitos internos e com mais de 2.500 quilómetros de fronteira, a sul, com Angola.
A RDC vive uma situação política periclitante desde as eleições que tiveram lugar em finais de 2018, com a bizarra constatação de que o Presidente eleito não tinha conseguido, afinal, a maioria dos lugares no Parlamento, onde o antigo Presidente, Joseph Kabila (na foto, à direita de Tshisekedi), elegeu deputados suficientes para obrigar Tshisekedi a aceitar formar um governo onde pouco mandava, porque a maioria dos ministros, e ainda os mais importantes, estavam nas mãos da FCC, formada, entre outras forças políticas "fantoche", pelo partido de Kabila, o Partido do Povo para a Reconstrução e a Democracia (PPRD).
Com a UDPS (União para a Democracia e o Progresso Social) de Tshisekedi, relegada para a posição parlamentar de dependente de uma coligação para poder formar Governo, apesar da vitória do seu lider nas presidenciais, os meses de negociações que se seguiram às eleições de Novembro de 2018, como o Novo Jornal acompanhou a par e passo, deram lugar a uma coligação frágil e onde Kabila conseguira manter as rédeas do poder na RDC através de um Governo constituído maioritariamente pelos seus homens de mão.
Com o passar do tempo, e com Kabila e Tshisekedi, cada vez mais em desacordo, a corda acabou mesmo por rebentar, apesar de alguns esforços dos vizinhos, como Angola, onde o Presidente João Lourenço, embora sem dar a conhecer publicamente, mantém uma forte pressão diplomática para tentar evitar um terramoto político no seu vizinho gigante do norte, cujas replicas atingiriam forçosamente Angola.
Mas também, a leste, a região mais problemática da RDC, com fronteiras com o Burundi - João Lourenço acaba de enviar o seu ministro das Relações Exteriores, Téte António, a Bujumbura para entregar uma mensagem ao seu homólogo Evariste Ndayishimiy - o Ruanda, e o Uganda, os corredores diplomáticos fervilham na procura de soluções que permitam manter o Congo no relativo sossego em que está há alguns anos, porque, como Joseph Kabila lembrava em 2016 no Parlamento de Kinshasa, este país tem potencial de desestabilização em todo o continente e no mundo, se não se tiver cuidado, intra muros e além fronteiras.
O "informador" salvador
Sabendo disso, o Presidente Félix Tshisekedi, perante o risco de desmoronamento do instável suporte político que tem, nomeou um representante para estabelecer pontes com outros partidos políticos que permitam formar um Governo sólido e com uma maioria clara sem a participação do PPRD de Kabila, ou, então, dissolverá o Parlamento forçando eleições antecipadas.
No seu discurso à Nação, Tshisekedi foi claro quando afirmou que a "actual maioria parlamentar estava gasta e uma nova é necessária" e, alinhando-se com as obrigações constitucionais, indicou um "comissário" para liderar os esforços políticos para "formar um novo Governo de maioria" sublinhando que, para isso vai "formar um novo Governo o mais rápido possível que possa, finalmente, corresponder aos anseios do povo congolês".
Recorde-se que, até se chegar a esta situação complexa e perigosa, tanto Tshisekedi, como Kabila, moveram montanhas diplomáticas entre os vizinhos e as lideranças da União Africana para arrecadar suporte às suas pretensões, sendo que Kabila o fez através de cartas e emissários, enquanto Tshisekedi se deslocou a alguns países, incluindo Angola, onde manteve um encontro de várias horas com João Lourenço.
Pelo que disse na sua alocução musculada na RTNC, Félix Tshisekedi terá conseguido o suporte que carecia para procurar encostar politicamene Kabila às cordas, a ponto de garantir que ou se abre espaço no país para forjar uma coligação alternativa - o que obriga a que parte dos deputados que estão actualmente com Kabila passem a apoiá-lo - ou recorre às prorrogativas constitucionais que tem e avança para eleições antecipadas para "pedir ao povo soberano uma maioria clara que permita governar o país com a tranquilidade que se exige".
A Constituição congolesa impõe que, se se verificar o cenário de eleições antecipadas, estas tenham lugar 60 dias após a dissolução da Assembleia Nacional, o que os analistas não têm quaisquer dúvidas de ser uma impossibilidade real, apesar de o Chefe de Estado ter garantido que as consultas que realizou durante o mês de Novembro junto dos lideres partidários nacionais lhe darem a certeza de que toda a gente está cansada das dificuldades impostas por Kabila na actual coligação de poder.
Ainda de acordo com a Constituição congolesa, neste momento, e depois de nomeada a personalidade que vai procurar encontrar uma solução, denominado oficialmente "informador", esta tem 30 dias, renováveis uma única vez, para evitar a ida a eleições que a RDC não tem condições para realizar e sem garantias de que Kabila e os seus aliados regionais não vão enveredar pela desestabilização deste imenso país cravado no coração de África e numa das mais complexas geografias do continente, que inclui os Grandes Lagos e as fronteiras a norte com a República Centro-Africana e o Sudão.
Mas...
Mas o outro lado parece não estar pelos ajustes e promete acção. Joseph Kabila mandou os seus homens na FCC deixar um aviso claro à navegação, fazendo lembrar que esta força política tem sob sua influência directa 300 dos 500 deputados do Parlamento, o que, se não ocorrer uma situação de difícil verificação nas actuais condições, os esforços de Tshisekedi estão condenados ao fracasso e só lhe vai restar a solução de ia às urnas de novo.
Mas Kabila acha que se está a verificar a tal situação extraordinária. Dizem os seus homens que estão a ser entregues largas somas de dinheiro a muitos dos deputados que garantem a sólida maioria à FCC.
Maioria essa que, desde ONG internacionais e nacionais, partidos políticos e muitos dos observadores que estiveram a acompanhar as eleições de Novembro de 2018, a FCC conseguiu uma maioria parlamentar forjada numa abrasiva fraude eleitoral, preparada durante os mais de 2 anos que Kabila conseguiu manter-se no poder além do que a Constituição permitia, embora as parte tenham acabado por aceitar a bizarra situação de a FCC ter conseguido uma esmagadora maioria na Assembleia Nacional e Tshisekedi ter vencido às eleições Presidenciais, o que configura um resultado eleitoral improvável nos padrões africanos.
Face a este turbilhão que, de novo, envolve a República Democrática do Congo, e perante os esperados 60 dias de intensas negociações entre o "informador" nomeado por Tshisekedi e os partidos que compõem a Assembleia Nacional, nos corredores diplomáticos intensificam-se os contactos e preparam-se planos de contingência para a eventual evolução da situação para a instabilidade política e social.
Recorde-se que as manifestações em Kinshasa, entre 2015 e 2018 provocaram milhares de mortos e situações de extrema violência.
O risco de expansão da instabilidade para os países vizinhos é grande, como se viu, por exemplo, com os conflitos no Kasai que levaram milhares de pessoas a refugiarem-se em Angola, ou ainda os perpétuos conflitos no leste que mantêm milhares de pessoas deslocadas nos países vizinhos e internamente, fazendo da RDC o país com mais deslocados internos do mundo.