Foi assim em Novembro de 2022, quando centenas de misseis e drones russos atingiram centrais eléctricas, linhas de transporte de electricidade, sistemas de geradores... e em Kiev sabe-se que vai ser assim este ano de 2023, faltando que tal chuva comece.
De Moscovo já veio, oficiosamente, a informação, através dos seus canais nas redes sociais, de que tem mais de mil misseis de longo alcance, especialmente os hipersónicos Kinzhal e os de cruzeiro Kalibr, além de milhares de drones, dos quais se destaque os Lancet 2, prontos para a campanha de Inverno que visa provocar um apagão generalizado na Ucrânia.
É por causa desta ameaça, que as fontes russas apontam como estando para ter início em finais de Novembro, início de Janeiro, que o Presidente Volodymyr Zelensky tem feito repetidos apelos aos seus aliados ocidentais, cada vez menos receptivos aos seus pedidos, para fornecerem mais sistemas de defesa antiaérea de forma a garantir alguma protecção às grandes cidades, como Kiev, desde logo, mas também Lviv ou Odessa.
Para já, Kiev deverá receber em breve um grupo de aviões de guerra de fabrico norte-americano, F-16, fornecidos por países europeus, com os quais poderá proteger melhor o oeste do país e as suas infra-estruturas críticas.
Mas, segundo os especialistas, dificilmente os F-16 terão um impacto robusto no curso da guerra, porque, sendo aviões antigos, mesmo que modernizados, não podem ser empregues na linha da frente por não possuírem mecanismos de protecção para os sistemas russos mais modernos, sejam os caças Su-34, equipados com misseis que podem abater um alvo a mais de 300 kms, sejam os sistemas antiaéreos S-400 de longo alcance ou os de médio alcance Pantsir-S1.
A melhor defesa é o ataque... político
Confrontado com uma situação que já não tem segredos para ninguém, de que os seus aliados da NATO, estão perder vigor dia para dia não só na capacidade de manter o fluxo de armas e dinheiros para Kiev, como também na vontade de o fazer, como tem sido noticiado abundantemente por jornais como The New York Times ou The Washington Post, os dois mais influentes nos EUA, Zelensky tem pela frente um desafio e uma possível solução.
O desafio é que, quando os meios e o dinheiro escasseiam, o atrito tende a passar da linha da frente para o circulo mais restrito do poder, e isso começa a gerar um ruído ensurdecedor em Kiev, onde vários media notam um distanciamento cada vez mais flagrante e perigoso entre o Chefe de Estado e o Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, Valerii Zaluzhnyi, cada vez mais apontado como um forte candidato a ocupar o lugar de Zelensky, seja em eleições, que estavam previstas para 2024 e foram já adiadas, seja de um golpe militar que possa emergir da insatisfação popular e militar com o curso da guerra, onde as desavenças de decisões entre os dois são já do domínio público.
Alias, como relatou a BBC, um sinal de que algo de muito grave está a suceder no "castelo" em Kiev foi a morte estranha do ajudante de campo de Zeluzhny, o major Hennadis Chastyakov, que, no seu aniversário, recebeu de presente uma granada disfarçada de adereço para servir vinho que explodiu quando a abria na companhia do seu filho de 13 anos, que ficou gravemente ferido.
Esta situação ficou ainda mais exposta como seriamente ameaçadora para o regime de Volodymyr Zelensky depois de a revista Time, a mais prestigiada nos EUA, há duas semanas, ter noticiado, citando fontes do seu círculo mais restrito, que o Presidente está com problemas psíquicos, com paranóias associadas ao nervosismo da situação, comportando-se ilusória e sobranceiramente como se fosse o Presidente do mundo ocidental, acusando os aliados da NATO de traição por estarem a reduzir o apoio a KIev...
Rapidamente esta peça da Time levou à procura interna pelos "traidores", como anunciou publicamente um dos seus principais conselheiros, e à procura de reduzir o impacto desta notícia, com Mikhail Podolyak a defender que se tratou de um artigo que expressa apenas a opinião de um jornalista, embora não se trate de um texto de opinião e onde são citadas diversas fontes próximas do círculo restrito do poder ucraniano.
Facto é que em Kiev, a crise interna cresce na razão inversa do decrescente apoio ocidental ao esforço de guerra, com países como os EUA a resvalar para fora da "trincheira" ucraniana, reduzindo o fluxo de dinheiro e de armas quase a zero, quando comparado com o ano passado, e na Europa, onde a Eslováquia, o maior apoiante logo a seguir à Polónia, travou a fundo no apoio tanto político como material, enquanto em Varsóvia o Governo polaco está mesmo a criar obstáculos adicionais à Ucrânia, especialmente na questão da fronteira cada vez mais apertada para as exportações ucranianas.
É por isso que Volodymyr Zelensky está mais que nunca apostado em forçar o caminho para a União Europeia, procurando que a entrada da Ucrânia no grupo de países com processos de adesão iniciados, iniba os apetites internos de assalto ao poder, até porque esse passo será vital para todos aqueles que governarem o país e a instabilidade inerente a um golpe militar colocaria, seguramente, essa fase histórica em causa.
Alias, alguns analistas admitem mesmo que as palavras recentes da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que se deslocou a Kiev depois de uma ausência de meses da questão ucraniana, teve como objectivo advertir as facções críticas de Zelensky de que qualquer acto inusitado levará à interrupção do processo de adesão.
E, para manifestar essa vontade, o Presidente ucraniano tem apostado em adequar a legislação interna à moldura europeia, nomeadamente no que toca ao combate à corrupção, um mostro gigantesco que devora o país há décadas, e que é apontado, além da guerra, como o grande obstáculo na adesão futura da Ucrânia à União Europeia, anunciando ainda que o país está a "cumprir totalmente as sete recomendações de Bruxelas para estar em condições de iniciar o processo de adesão".
Outra esperança é que o cansaço ocidental com esta guerra provoque mudanças na estratégia de Kiev, porque um facto incontornável é que sem o apoio ocidental, a Ucrânia fica sem capacidade de manter o esforço de guerra, o que pode conduzir à percepção que este momento poderá ser mais vantajosa para Kiev negociar com Moscovo que mais tarde.
E um dos problemas, que pode estar na génese de uma tentativa de mudança no círculo do poder, é que Zelensky tem sublinhado exaustivamente que jamais negociara com Putin até que o último soldado russo deixe o território ucraniano reconhecido internacionalmente, o que compreende a Crimeia, anexada em 2014, e Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhia, anexadas em 2022, das quais o Kremlin já advertiu que em nenhuma circunstância abrirá mão.
A candidatura de Putin...
... às eleições presidenciais de Março de 2024, que chegou mesmo a ser anunciada nos media ocidentais, só deverá, segundo os media russos, ser apresentada, embora seja um não-segredo para ninguém na Rússia, depois de estarem cumpridos alguns desígnios no que diz respeito à guerra e à situação política em Kiev, onde Vladimir Putin espera que Zaluzhny, que parece estra menos convencido da vantagem da continuação do conflito, deponha Zelensky e, assim, se abra uma nova porta negocial entre os dois países.
Esta clarificação, da não decisão ainda da sua 5ª candidatura pelo chefe do Kremlin, foi avançada pelo porta-voz Dmitry Peskov, que admitiu ser natural as expectativas que tal momento desperta entre os "cientistas políticos".
Todavia, Putin pretende, como admitem vários analistas, anunciar esse propósito quando lhe for mais conveniente face a eventuais progressos na guerra na Ucrânia, onde a sua "operação militar especial" parece estar a marcar passo, apesar de ténues avanços em alguns locais, como Adiivka, no Donbass, local onde os dois lados combatem ferozmente pela localidade que consideram estratégica, embora tenha sido precisamente essa insistência que levou Zelensky, que quer manter os combates ferozes e geradores de milhares de vítimas, e Zaluzhny, que quer poupar as suas forças e evitar milhares de mortes desnecessárias.
Tal como em Bakhmut, no ano passado, conquistada pelos russos do Grupo Wagner ao fim de nove meses de combates que deixaram como rasto mais de 100 mil mortos, 60 mil ucranianos e 40 mil russos, segundo algumas fontes, Adiivka é vista por Zelensky como fundamental para provar aos aliados ocidentais que as forças ucranianas não desistiram de derrotar os russos, enquanto o chefe militar apenas vê ali mais um "matadouro" para os seus homens e não vê objectivo militar que o justifique.
Mas pode ser um passo considerado igualmente importante para Putin avançar com o anúncio da candidatura, se as suas forças tomarem a localidade da região de Donetsk.
Isso e ainda um qualquer golpe de Estado, militar ou com apoio militar, que deponha Zelensky e permita criar um novo mapa com novos caminhos de saída para este conflito que já vai em 21 meses, desde 24 de Fevereiro de 2022, com um registo de mortes que, segundo analistas mais conservadores - números exactos provavelmente nunca se saberá -, já ultrapassaram as 400 mil entre ucranianos e mais de 200 mil do lado russo.
Para ajudar a que este cenário ocorra, a estratégia de Putin para este Inverno, é, segundo alguns dos mais afinados bloggers de guerra russos, fazer cair uma chuva de misseis e drones sobre a infra-estrutura eléctrica ucraniana, provocando um contínuo apagão nos meses mais gelados, além de destruir os acessos rodoviários e ferroviários, especialmente as pontes, que ligam os países vizinhos à Ucrânia, e por onde passam as mercadorias vitais à subsistência das populações e do seu esforço de guerra no leste.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.