O caso de Carlos Manuel de São Vicente tornou-se um exemplo preocupante dessa distorção. Julgado num processo marcado por irregularidades processuais, ausência de provas consistentes e sucessivas violações legais, cumpriu, no dia 22 de Setembro, o quinto ano de privação de liberdade em Viana. Ao longo deste período, foram múltiplas as ocasiões em que a lei determinava a sua libertação e, ainda assim, tal lhe foi negado.
• Em 2020, 2021 e 2022, os pedidos de habeas corpus foram ignorados, mantendo-se uma prisão preventiva para além dos limites legais.
• Em 2023, apesar da Opinião 63/2023 do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, que solicitou a sua libertação imediata, Angola não cumpriu as suas obrigações internacionais.
• Em 2024, quando atingiu metade da pena, a libertação voltou a ser bloqueada por inércia administrativa na Direcção-Geral dos Serviços Prisionais do Ministério do Interior e no Tribunal da Comarca de Luanda, em desconformidade com a lei.
• Em 2025, pela quarta vez, a liberdade condicional, após dois terços da pena, foi recusada em clara violação do Código Penal e do Código de Processo Penal.
Esta sucessão de decisões levanta uma questão inevitável: que combate à corrupção é este que, em vez de respeitar a lei, a contorna sistematicamente?
A justiça não pode ser confundida com vingança. Deve assentar na legalidade, na transparência e no respeito pela dignidade humana. No entanto, a forma como este processo foi conduzido transformou empresários em inimigos políticos, confiscou patrimónios sem provas de corrupção e atingiu famílias inteiras, incluindo terceiros inocentes e dependentes económicos que nada têm a ver com as acusações.
As consequências sociais foram graves. Negócios lícitos foram encerrados, empregos desapareceram e riqueza foi destruída sem qualquer estratégia de substituição produtiva. É legítimo perguntar: será isto justiça ou vingança política? Como podem sobreviver famílias privadas de todo o seu sustento? Porquê escorraçar famílias a viver um forçado exílio, apreendendo as suas habitações? Acusar não é provar. Quem acusa deve provar. Não é o inocente que tem de provar a sua inocência. Tal prática levanta sérias preocupações quanto ao respeito da lei e à protecção de direitos fundamentais e de garantias, consagrados na Constituição angolana e em tratados internacionais ratificados pelo País.
Do ponto de vista jurídico, a questão é igualmente alarmante. O artigo 36.º da Constituição garante o direito à liberdade e à segurança. O artigo 13.º consagra a prevalência das convenções internacionais ratificadas, entre as quais o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ao violar artigos 9 e 14 do primeiro e 9, 10 e 11 da segunda, Angola expôs-se a censura internacional e fragilizou a credibilidade do seu sistema judicial.
Ante as ilegalidades e irregularidades do processo judicial e da detenção em 22 de Setembro de 2020, foi apresentada uma queixa às Nações Unidas em 2021. O Conselho dos Direitos Humanos da ONU emitiu a Opinião n.º 63/2023, em 14 de Novembro de 2023 e demandou a libertação imediata de São Vicente. Angola não cumpriu.
Os bens apreendidos ilegalmente não eram meros símbolos de ostentação: eram negócios florescentes, que empregavam mão-de-obra nacional, formavam e profissionalizavam jovens. Ao serem abruptamente encerrados, aumentou-se o desemprego, a exclusão e destruiu-se riqueza. Quantos empregos foram eliminados? Quantos foram criados para os substituir? Essa contabilidade negativa, apresentada como redistributiva, serviu o País? Ou beneficiou apenas alguns novos detentores, premiando-os sem experiência nem esforço, quase sempre por vias pouco transparentes?
A metáfora é conhecida: o poder apresenta-se como um Robin dos Bosques moderno, retirando bens aos "ricos" para supostamente devolver aos "pobres". Mas, como lembrava a minha sogra Ilda, "tirar não é pôr". Sem investimento produtivo, sem contenção de gastos, sem visão nem estratégia, o que se tira rapidamente se esgota. O povo entretém-se por uns instantes, como no sangrento Coliseu romano, mas logo se apercebe de que voltou a atingir o zero.
É verdade que a justiça é feita por homens e, como tal, é falível. A justiça errou porque não respeitou a lei, por decidir sem provas, por adopção de legislação inconstitucional, por pressa insensata em aprovar medidas insuficientemente ponderadas, por condicionantes políticas ou institucionais. Mas se errou, tem de ter a humildade de admiti-lo. A grandeza de um sistema judicial não está em nunca falhar, mas em reconhecer os seus erros e reparar as injustiças causadas. Persistir em decisões arbitrárias não fortalece o combate à corrupção - mina-o, convertendo-o num espectáculo punitivo que destrói a confiança social.
Se a justiça se transverte em encenação, perseguição e vingança, não em legalidade e verdade, que futuro podemos esperar deste presente justicialista? Só poderá ser de fragilidade institucional, descrédito social e insegurança jurídica. Justiça sem justiça não constrói futuros radiantes.
No quinto ano da sua detenção, São Vicente enfrenta graves problemas de saúde, que motivaram a sua recente hospitalização em Luanda. Este facto acrescenta urgência à questão. O direito de qualquer cidadão a cuidados médicos adequados e ao devido processo legal não é negociável: é um imperativo constitucional e humano.
A luta contra a corrupção só será eficaz se for conduzida dentro da lei e com respeito pelos direitos fundamentais. São Vicente tem o direito de ter direitos. Quando se permite que casos como este se prolonguem nesta moldura de irregularidades, o que se constrói não é justiça, mas arbitrariedade.
Após cinco anos de prisão, com a vida em risco e perante sucessivas ilegalidades, é tempo de corrigir este erro. O respeito pelo Direito Internacional, da Constituição e da legislação penal aplicável exige a libertação imediata de Carlos Manuel de São Vicente.