Parece haver consenso na sociedade de que a causa profunda de tais tumultos são as condições de vida pouco dignas em que vive a maioria da população, sendo que o aumento do preço do gasóleo contribuiria para piorar a situação. Terá, então, decorrido também desse entendimento que, no seu pronunciamento à nação, na sequência dos mesmos, o Presidente da República asseverou: 1
"Compreendemos que temos ainda muitos problemas sociais por resolver. O Estado está a fazer o seu melhor, investindo na área social, na saúde, educação, habitação e criação de emprego, com a admissão massiva de profissionais da saúde, da educação, com a formação profissional e com as grandes obras públicas de construção de infraestruturas rodoviárias, portuárias, aeroportuárias, de energia e de água, particularmente das grandes barragens do programa de combate aos efeitos da seca no sul de Angola, no Cunene, Huíla e Namibe, que absorvem muita mão de obra proveniente de todo país.
As obras de construção de infraestruturas nas novas províncias vão igualmente oferecer emprego a milhares de jovens que se interessem pelo trabalho. O Estado não pode ser o único empregador; contamos também com o sector privado, o cooperativo e com o autoemprego que, justiça seja feita, têm feito também o seu melhor no que diz respeito à oferta de postos de trabalho."
É facto, entretanto, que se assiste, em geral, a uma contínua degradação da situação económica e social do país, como o indiciam: a fome, com pelo menos cerca de 2 milhões de habitantes enfrentando insegurança alimentar; o elevado nível de pobreza, com incidência de 41% - a monetária - e de 54% - a multidimensional; a alta taxa de desemprego, sendo de 29% a geral e de 53% a jovem; a baixa cobertura dos cuidados primários de saúde (39%, em 2021); a existência de mais de 7 milhões de crianças e adolescentes em idade escolar fora do sistema de ensino; uma cobertura do fornecimento de água potável de apenas 52%; uma cobertura do fornecimento de electricidade de apenas 43%; e a privação da maioria da população do saneamento básico e de habitação digna. Por outro lado, entre 2020 e 2024, o Produto Interno Bruto (PIB) por habitante caiu cerca de 10,6%, correspondendo a uma queda média anual composta de cerca de 1,6%, enquanto os rendimentos nominais registaram, nesse período, uma perda do seu poder de compra de próximo dos 55%.
Estamos, assim, perante um quadro em que o declarado melhor esforço do Estado, assim como - no que respeita à oferta de postos de trabalho - o percebido, pelo Estado, melhor esforço dos sectores privado e cooperativo, não se mostram suficientemente bons para melhorar as condições de vida da população. Deste modo, sob o risco de percepção da sociedade de que esteja a "atirar a toalha ao tapete" ou a declarar-se incompetente não o fazendo, é necessário que o Estado mude de estratégia e a abordagem para a resolução dos problemas que a sociedade enfrenta.
Nesse quadro, é importante notar que a avaliação do desempenho do Estado não deve ser feita meramente pelas acções que desenvolve ("a admissão massiva de profissionais da saúde, da educação, com a formação profissional e com as grandes obras públicas de construção de infraestruturas rodoviárias, portuárias, aeroportuárias, de energia e de água, particularmente das grandes barragens do programa de combate aos efeitos da seca no sul de Angola, no Cunene, Huíla e Namibe"), mas sobretudo pelos resultados e impacto das acções que desenvolve. (P. ex.: com défice de cobertura do fornecimento de electricidade de 57%, mas com capacidade de produção que excede as necessidades de consumo, de que adianta continuar a aumentar a capacidade de produção? Ou de que adianta ter grandes hospitais modernos, se estes operam abaixo da sua capacidade por limitações de recursos humanos e materiais e a cobertura de cuidados primários de saúde está abaixo dos 40%?) Por isso, é necessário assegurar-se que as acções escolhidas sejam as mais eficazes e as mais eficientes e não as mais vistosas, o que pressupõe que sejam realizados diagnósticos correctos dos problemas existentes e que as adjudicações dos contratos de fornecimentos de bens e serviços e de empreitadas de obras públicas - quando haja lugar a isso - sejam preferencialmente feitas por meio de concursos públicos. Mas, para o efeito, será determinante que os aspectos de economia política nas instituições políticas e económicas que agem de outro modo, favorecendo o rentismo, sejam resolvidos. Isso porque - e nunca é demais reiterar -, como notaram Tanzi e Davoodi em Roads to Nowhere: How Corruption in Public Investment Hurts Growth:2 Tanzi, Vito e Davoodi, Hamid, International Monetary Fund, March, Economic Issues 12, 1998.: "Cerimónias de corte de fita que marcam a abertura de projectos de investimento - como estradas, barragens, canais de irrigação, centrais de energia, portos, aeroportos, escolas e hospitais - são o sonho de todos os políticos." [...] "Em alguns países (...) políticos corruptos parecem escolher projectos de investimento não com base no seu valor económico intrínseco, mas na oportunidade de subornos que esses projectos apresentam." [...] "...essa corrupção aumenta o número de projectos de capital realizados e tende a aumentar o seu tamanho e complexidade". Só depois de resolvidos esses aspectos é que, então, poderemos esperar ver priorizados, eventualmente, por exemplo: as unidades de cuidados primários de saúde sobre os grandes hospitais; as infraestruturas desportivas comunitárias e escolares sobre os estádios de futebol e pavilhões gimnodesportivos; os investimentos na distribuição de electricidade sobre os investimentos na produção; a melhoria do desempenho dos sistemas de informação e comunicação existentes sobre a compra de satélites geoestacionários.
Por outro lado, há que ter-se também presente que a resolução sustentada do problema do desemprego no país não é alcançável meramente com emprego público na administração pública e corpos administrativos (dos serviços de saúde, de educação, da polícia nacional e das forças armadas) e com os empregos ocasionais decorrentes de empreitadas de obras públicas, mas com o crescimento económico sustentado que sustente a realização de investimentos produtivos e de médio e longo prazos.
Resolvido o problema de economia política ora referido, a mudança de estratégia e a abordagem para a resolução dos problemas da sociedade, na prossecução de que os melhores esforços do Estado se mostrem suficientemente bons na "resolução dos problemas do povo", exigirá que se avance, com urgência, para: a estabilização macroeconómica; o saneamento das finanças públicas, contemplando a reestruturação da dívida pública, o tratamento dos atrasados internos, o saneamento do sector empresarial público, a reestruturação do sistema público de apoio à actividade económica privada e a racionalização da despesa pública; e a transformação estrutural da economia. Isso sem perder de vista o tratamento imediato e concomitante das situações emergenciais da fome e de saúde pública. Com isso se estará também em condições de se promover o crescimento económico sustentado, com prioridade para os sectores da agricultura, da indústria ligeira e dos serviços (turismo, sobretudo), tendo em conta o perfil da mão-de-obra nacional pouco qualificada, como meio de resolução também sustentada do problema do desemprego e de garantir o acesso a rendimentos por parte das famílias, uma condição indispensável para a melhoria das suas condições de vida.

*Economista

1 https://www.angop.ao/noticias/discursos-do-presidente/integra-da-mensagem-a-nacao-do-pr/.

2 Tanzi, Vito e Davoodi, Hamid, International Monetary Fund, March, Economic Issues 12, 1998.