A música que percorre as honras militares aproxima o turista Paulo Prete da Assembleia da República portuguesa. Mais de perto, ainda com os ouvidos distraídos pela animação protocolar, a atenção volta-se para o telhado, onde a presença de snipers aguça a curiosidade. "O que se passa? Quem está do outro lado?".

As perguntas, aqui verbalizadas com sotaque do Brasil, repetem-se em várias línguas a cada paragem da caravana de João Lourenço por Lisboa, cidade de partida da visita de Estado a Portugal, nesta sexta-feira, 23, alargada ao Porto.

Apanhado no meio da preenchida agenda presidencial, Paulo engrossa a fila de "espectadores do aparato", programa de entretenimento que, horas antes da exibição na Casa das Leis, "prendia" dezenas de pessoas na Praça do Império, em Belém, um dos ex-líbris turísticos da capital lusa.

Mais do que observar o que se passa diante do Mosteiro dos Jerónimos, onde o Presidente da República de Angola é recebido pelo homólogo português, Marcelo Rebelo de Sousa, a multidão faz questão de fotografar e de filmar a acção, mesmo desconhecendo o argumento e os protagonistas.

"Dá para perceber que é importante", atira a croata Mirjana, que, "just in case", prefere registar o momento com o telemóvel, gesto que faz protocolo entre quem assiste ao encontro dos Chefes de Estado.

Férias para ver o Presidente da República

À margem da euforia mediática, o angolano Álvaro Almeida sobressai pelo recato, que disfarça um profundo entusiamo. "Tirei dois dias de férias para acompanhar a visita", conta ao NJOnline, determinado em ver João Lourenço para além ecrãs da TPA, o seu canal de ligação a Angola.

"Gostaria de transmitir ao novo Presidente da República que estou a gostar do trabalho dele, pela mudança que tem criado em Angola, pela liberdade de imprensa e não só", aponta o funcionário público, ainda à procura de um contacto mais directo com João Lourenço.

"Tenho de ir ao Consulado saber se vai estar com a comunidade angolana, porque não ouvi nada sobre isso".

Segundo o programa da visita, esse momento está reservado para o final da tarde desta sexta-feira, 23, mas apenas para os representantes da comunidade, organizados, por exemplo, em associações.

É o caso da Plataforma de Reflexão Angola - Associação Cívica "ANGOLREFLEX", que lançou esta semana a campanha "Angola Voto na Diáspora em 2022", definida como "um Imperativo inegociável e imediato".

"Os angolanos a residir no estrangeiro vêm por meio desta campanha reiterar o apelo, agora ao Presidente da República João Lourenço, enquanto Titular do Poder Executivo, para criação urgente e definitiva das condições para o exercício do nosso direito nos futuros pleitos eleitorais", explicam os promotores da iniciativa, que poderá reaproximar de Angola cidadãos como João Manuel, assumido desencantado com a política nacional.

"Está tudo hipotecado!", resigna-se, sem ponta de esperança na nova governação.

"Quem entra a matar como este Presidente entrou pouco ou nada vai fazer. Ele diz que mexe no peixe grande, mas ele também faz parte do peixe grande, por isso não vamos ter hipóteses", lamenta este angolano de "50 e tais anos", que se cruza com a caravana do Chefe de Estado à passagem por Belém.

"Estava a andar por aqui e calhou apanhar a visita, mas para mim isto é tudo teatro porque este [Presidente] também faz parte da história, não é inocente. Todos comeram no mesmo prato, por isso não acredito que vá mudar o país".

"JES deixou um bom trabalho, JLO está a estragar tudo"

Para além da descrença no poder transformador do novo líder angolano, João Manuel, residente na América há mais de três décadas, partilha receios de um retrocesso para a desgraça.

"A perseguição em África é péssima. Cria ódio, vingança, e é isso, em parte, que ele está a fazer contra a família do ex-Presidente", acusa o emigrante, defendendo que a paz, bom senso e respeito semeados por José Eduardo dos Santos (JES) estão em risco de desaparecer.

"JES deixou um bom trabalho, este [Presidente]está a estragar tudo", reforça, convencido da inocência de José Filomeno dos Santos, Zénu, no caso dos 50 mil milhões de dólares.

"É um miúdo inocente, da mesma forma que Isabel dos Santos é a empresária que mais investe e emprega em Angola. Mas com essa cúpula que está atrás dele, o Presidente só quer saber de perseguir, prender...como se tivesse as mãos limpas. Mas não tem", prossegue João Manuel, para quem o único "pecado" de José Eduardo dos Santos foi rodear-se de pessoas erradas.

"O homem fez aquilo que foi possível, mas quem está agora faz o quê? Só folcrore. Dizem que vão perseguir o dinheiro no estrangeiro, e eu pergunto: o novo Presidente não tem fortuna, depois desse anos todos no sistema? Todo o mundo tem rabos de palha", insiste João, alertando ainda para o crescente endividamento do país.

"Angola não tem dinheiro, é um país emergente que está dependente dos outros países para ter dinheiro. Por isso é que estamos a assitir a todo esse teatro".

O tom crítico de João Manuel encontra uma versão menos dura em Lucinda Andrade, que apressou a saída do trabalho, na secretaria de uma escola pública de Lisboa, para espreitar a passagem do Presidente da República pelos Paços do Concelho.

"Vim por curiosidade, e porque gosto dos discursos que tem feito. Mas quero ver para crer, dar tempo ao tempo, porque para já, por aquilo que me contam os familiares, nada mudou na vida do povo. Aliás, se mudou foi para pior, por causa da desvalorização do kwanza", diz a administrativa de 52 anos, impressionada com a dimensão da comitiva angolana.

"Era mesmo preciso vir essa gente toda? Já imaginou a despesa? Ainda por cima estão num dos hotéis mais caros da cidade, senão o mais caro mesmo. Era mesmo preciso? Conforto não tem de significar esbanjamento, e acho que o Presidente tinha a obrigação de marcar uma posição diferente do anterior, cortando nesses excessos", defende a benguelense.

A escassos metros da conversa, Santos Miguel Madalena, contrapõe que "há que depositar confiança" no Chefe de Estado "para que possa governar e comece a construir".

Apesar de viver em Espanha há 31 dos seus 48 anos, experiência denunciada pelo português "espanholado", o malanjino mantém a ligação ao país através dos canais diplomáticos e da música, motivo da presença em Lisboa.

"Vim com a minha mulher para assitir ao concerto do Matias Damásio", conta, entusiasmado com o inesperado "brinde" presidencial.

"Nunca pensei ver o Presidente de Angola e hoje já aconteceu duas vezes, ambas por acaso", acrescenta Santos Miguel, que também se cruzou com a caravana de João Lourenço em Belém. "Até fui entrevistado para uma televisão angolana. Se calhar a esta hora já sou famoso no meu país", brinca.

Uma"palhaçada" sem graça, as mágoas coloniais e o fim do "irritante"

À margem do "entretenimento do aparato" que une a maioria dos que se cruzam com o Presidente da República em Portugal, sobressaem os protestos de quem atrasa rotinas à reboque de ruas cortadas e outros constrangimentos de segurança.

"Logo vi que havia palhaçada", dispara o reformado António, à passagem dos cavaleiros da Guarda Nacional Republicana, em Belém. "Como é não vamos andar revoltados? Estou aqui há mais de uma hora à espera do autocarro porque estes malandros cortaram tudo", protesta, sentado numa das paragens que integram o perímetro de acesso às cerimónias de Estado.

"Ai é o Presidente de Angola que vai ali? Então é graxa", diz o octagenário, depressa transportado para as mágoas coloniais.

"Se não fosse o Mário Soares a estragar tudo...ainda hoje estava em Angola. Vivi lá 20 anos", recorda, enquanto despeja insultos contra o já falecido ex-Chefe de Estado português.

Os ataques ao antigo Presidente luso, irreproduzíveis, saltam ao ouvido de Adelino de Sousa e Francisco Cunha, que saem em defesa da memória de Mário Soares.

"Fez asneiras como todos fazem mas foi um grande Presidente português, um verdadeiro homem da democracia", salienta Adelino, para depois passar a palavra ao amigo Francisco, coronel das Forças Armadas que combateu em Angola.

"Estive lá de 1967 a 1969, mas como as memórias de guerra nunca são boas, esse é um passado que está enterrado", aponta.

Com a narrativa voltada para o futuro, Francisco Cunha acredita que João Lourenço devolve a esperança de uma Angola melhor, sentimento partilhado por Adelino Cunha.

"Criaram-se muitos defeitos com o anterior Presidente por isso é tão importante renovar. Acredito que agora o país vai dar esse passo em frente", confia, lembrando o impacto da mudança para as relações bilaterais.

"Temos a beneficiar a muitos níveis, nomeadamente comercial porque temos muitas relações de negócio com Angola. Exportamos muito para Angola e já importamos alguma coisa. Ao mesmo tempo, também há muitos angolanos cá a viver, por isso estamos muito ligados".

A proximidade luso-angolana ressalta igualmente da conversa com José Figueiredo, um dos portugueses que pararam para assistir à recepção oferecida pela presidência lusa a João Lourenço.

"Espero que esta visita seja um virar de página nas relações ultrapassando-se alguns empecilhos...os irritantes como nos acostumámos a ouvir".