Depois da morte do presidente fundador da UNITA, Jonas Savimbi, e do vice-presidente, o general António Dembo, ambas em 2002, o general Lukamba Paulo "Gato", enquanto secretário-geral desse partido, coordenou a Comissão de Gestão nas negociações para a paz do País. Porquê que, em 2003, inicialmente, não quis concorrer ao cadeirão máximo dos "maninhos"? O que o levou a mudar de posicionamento e concorrer, quando já se falava que o diplomata Isaías Samakuva seria candidato único?
É bom que tenha posto esta pergunta para ajudarmos a esclarecer. Achei que a UNITA devia manter-se na senda da inovação, da iniciativa estratégica. Depois do fim do conflito armado, achei que sim, teria chegado o momento, a oportunidade para fazer escola. Então, entre os partidos históricos, vamos organizar uma eleição com candidaturas múltiplas, vai ser a primeira vez em Angola. Vamos fazer história, vamos fazer pedagogia, com certeza que vai servir para os demais partidos, e orientámos as estruturas partidárias no sentido de sensibilizarem as pessoas, para que houvesse candidaturas múltiplas. Mas, infelizmente, quando eu próprio passei a acção, contactei três a quatro camaradas, falei com o Jardo Muekalia, falei com o mais-velho [Samuel] Chiwale e falei com outros, ouviram-me falar de candidaturas, olharam para mim como se eu fosse um extraterrestre, na altura era impensável. Quem é que iria assumir tamanha responsabilidade logo a seguir à morte do velho Jonas, e havia uma corrente forte que defendia um candidato único, na pessoa do mais-velho Isaías Samakuva. Eu disse que, na minha qualidade de coordenador da Comissão, a estratégia era o aprofundamento da democraticidade interna do partido, porque a ideia era fazer escola, a iniciativa estratégica estruturante, não só para o nosso partido, mas também para a classe política angolana no seu todo. Eu dizia, na altura, que, se não houvesse candidatos em nome do objectivo que queríamos atingir, eu iria candidatar-me. E foi isso que aconteceu, não tendo aparecido um candidato e a necessidade de fazermos essa grande abertura. Eu decidi, com o apoio dos meus colegas, candidatar-me, e assim temos hoje, entre os partidos históricos, a UNITA com grau de democraticidade absolutamente fora de série.
Passados 20 anos, pode-se dizer que foi um processo de unificação muito burocrático, tendo em conta as mortes do presidente e vice-presidente da UNITA, e também porque figuras importantes do partido estavam nas matas. Como foi, na verdade, o processo de unificação até se chegar aos acordos do Luena? Cheguei a ouvir na imprensa que a UNITA, naquele período, aquartelava em vários pontos perto de 80 mil pessoas.
Não. Nós aquartelávamos 150 mil homens, a quem foi preciso enviar uma mensagem de confiança, de fé, uma mensagem de alguma certeza, de que o processo iria desembocar em alguma coisa que valesse a pena investir. Com certeza que morreu o presidente, morreu o vice-presidente e colocámo-nos numa posição difícil estatutariamente. Não estava previsto um caso como este. O estatuto era omisso nessa matéria e em concertação com as principais forças vivas do partido, os principais dirigentes, com certeza que encontramos um consenso em que foi no sentido de que o secretário-geral assumisse os destinos do partido. E foi o que fizemos. Então, fizemos uma análise mais profunda que podia ser na altura, examinamos todos os contornos internos e externos do conflito, tínhamos sobre a mesa várias opções, contrariamente ao que se diz, tínhamos sobre a mesa duas a três opções.
Como o partido completamente fragilizado devido às baixas em combate, quais são as duas opções que tinham sob a mesa?
Podíamos continuar a guerra, num modelo de guerra de baixa intensidade, mas com uma grande capacidade de perturbar a ordem e a estabilidade.
Para manter a guerra, era necessário ter porção significativa de material bélico...
Com certeza que tínhamos.
General, como iriam continuar a guerra se a UNITA estava fragilizada depois da morte do presidente Jonas Savimbi?
Não é bem isso. A estratégia que o Governo usou foi: concentrou-se no Leste do País e aniquilou o resto. E nessa estratégia, era preciso fazer a mesma coisa província por província. Isso iria levar mais quantos anos? Houve camaradas que pediram que a direcção da Comissão de Gestão deixasse o Leste e fosse para uma outra província para podermos organizar-se e recomeçar o combate. Foi preciso muita concertação, muita persuasão e dissuasão, até que encontramos um programa consensual que propusemos a todas as forças vivas do partido que deram o seu aval a que iniciássemos os contactos que nos podiam conduz até a um processo negocial. Foi o que aconteceu.
A declaração: "nem mais um tiro. Temos de preservar os homens vivos e negociar a paz", do malogrado Presidente José Eduardo dos Santos, influenciou ou não as partes a sentar-se à mesa?
Não ouvi essa declaração de nem mais um tiro, porque, depois da morte do presidente e do vice-presidente, a guerra continuou. O camarada [Marcial] Dachala olhou para mim e disse: "Bom, ó caro Lukamba Gato, depois do velho e o vice-presidente, essa guerra? Esses helicópteros? O visado é o senhor! Está consciente"? Eu disse, com certeza, que estou. Estamos em conflito, com certeza que estou, mas estamos aqui para podermos contrariar.
Depois da morte de Jonas Savimbi e do vice-presidente António Dembo, quanto tempo depois durou para UNITA parar definitivamente com a guerra?
Também é importante dizer que, depois da morte do presidente, do vice-presidente, isso foi tudo em Fevereiro, tivemos tempo de fazer um retiro que nos permitiu reflectir. Foram, no fundo, três ou quatro dias de reuniões intensas até de madrugada.
As reuniões foram presenciais?
Foram presenciais. O grupo que estava comigo, estava comigo, como membro da direcção, o senhor Dachala, o senhor Sakala, o engenheiro Blanche, o general Vituzi, o actual comandante provincial da Polícia no Bengo e mais duas pessoas. Éramos perto de sete dentre os 13 membros do Comité Permanente anterior e conseguimos fazer reflexão, examinámos, o mais exaustivamente possível e tirámos linhas de orientação. Fomos nós orientar um cessar-fogo unilateral, aproveitando o dia 13 de Março, isso foi nossa iniciativa, aproveitámos o dia 13 de Março de 2002, dia de aniversário do partido, e decretámos um cessar-fogo unilateral. A partir dali, encetaram-se alguns contactos que foram materializados e, a partir do dia 18 de Março, começaram a intensificar-se os contactos que nos conduziram ao Protocolo complementar do Luena.
A figura de Jonas Savimbi é quase endeusada. Do convívio que manteve com ele, o que resta contar que não é público?
Não é uma questão de endeusamento.
Mas é o que a sociedade sente...
Jonas Savimbi foi o único dentre os três grandes líderes do nosso País que elaborou pensamento político, económico, do ponto de vista diplomático e cultural. Foi um líder na verdadeira acepção da palavra, foi um guia, elaborou pensamento, formou quadros, era quase uma obsessão para ele a formação, mesmo em situações difíceis de perseguição feroz, havia sempre tempo para alguma conferência, organizar debates, organizar conferência para a formação de quadros. E, muito cedo, em 1979, começou a enviar os primeiros jovens, os primeiros quadros para o estrangeiro, usando das suas amizades com alguns chefes de Estado africanos. Em 1979, cheios de incertezas, nós ainda na mata, já ele estava a enviar dezenas e dezenas de jovens para a formação no exterior. Jonas Savimbi era um construtor, em 16 anos, ele construiu o Estado dentro do Estado. Em 16 anos, com todos os pressupostos de um Estado, com uma cultura própria. Portanto, foi um verdadeiro líder, que não temos de subestimar, nem podemos comparar com tanta facilidade com um ou outro. Nós devemos muito respeito, muita consideração ao Velho Jonas, não é uma questão de endeusamento, uma questão de mito. Não, não o é. É uma realidade, corresponde à realidade, grande capacidade de consciencializar, de formar, de orientar, de criar. Ele construiu valores e colocou em cada um dos seus quadros valores, princípios que fazem que cada um de nós se orgulhe de ter sido discípulo do Velho Jonas.
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