No seguimento do seu périplo africano, no qual Antony Blinken pretende deixar preto no branco qual a nova estratégia dos EUA para a África subsaariana, a RDC e o Ruanda não são paragens escolhidas sem um objectivo claro que tem em vista a questão do potencial conflito de larga escala entre os dois vizinhos dos Grandes Lagos.
Isso mesmo afirmou Blinken no encontro que manteve com o Presidente congolês (na foto), na terça-feira, onde foi abordada ao detalhe a parceria entre os dois países, sendo que a RDC é uma clara aposta estratégica de Washington, tal como o Ruanda, um dos grandes aliados dos EUA na África central, sendo, por isso, do interesse dos norte-americanos procurar travar uma escalada da tensão entre Kinshasa e Kigali.
A recente investida do M23, um grupo guerrilheiro criado em 2012 com elementos oriundos do Ruanda e do Uganda, no leste do Congo, nas províncias do Kivu Norte e Sul, e ainda em Ituri, que estava praticamente desmantelado há anos, levou a uma escalada na tensão entre os dois países, a ponto de os Exércitos ruandês e congolês terem protagonizado escaramuças que facilmente poderiam ter levado a um confronto de larga escala, tal foi o tom das acusações mútuas.
Este é um tema que interessa particularmente a Luanda, até porque o Presidente João Lourenço, que lidera a Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL), tem liderado os esforços regionais para acalmar os ânimos, estando, inclusive, em cima da mesa uma Cimeira tripartida que deverá ocorrer na capital angolana com a presença dos Presidentes Paul Kagame e Félix Tshisekedi.
O facto de Blinken ter esta questão da tensão entre Kigali e Kinshasa no topo da sua agenda e não ter colocado Luanda como ponto de paragem neste seu "tour" africano tem, claramente, como razão o decurso da campanha eleitoral em Angola, até porque dificilmente ocorrerá uma saída pacífica e sólida para o drama gerado pelos rebeldes do M23 sem uma envolvência próxima de Luanda.
Isso mesmo ficou claro quando Blinken disse de forma clara que os EUA apoiam totalmente os esforços que estão a ser conduzidos por Angola e pelo Quénia para estabilizar a região.
"Estamos muito preocupados com os relatórios credíveis que apontam para o apoio do Ruanda ao M23. Pedimos a todas as partes na região que travem qualquer apoio ou cooperação com este grupo guerrilheiro, ou qualquer outro grupo armado. Qualquer entrada de estrangeiros, países ou grupos de toda a natureza na RDC só deve acontecer com transparência e consentimento de Kinshasa", disse o chefe da diplomacia norte-americana.
Estas palavras de Blinken dificilmente podem ser mantidas fora do principal problema do leste do Congo, que é a cobiça dos vizinhos Uganda e Ruanda pelos vastos e ricos recursos naturais no subsolo congolês, desde logo o coltão e o cobalto, minerais estratégicos para as indústrias que mais usam tecnologias de ponta, como as telecomunicações, informática e as ligadas à transição energética.
Nas quais os EUA estarão, naturalmente, interessados, quando se sabe que a RDC tem mais de 70% do coltão em reservas no mundo e que é a China quem lidera os meandros deste negócios, onde Washington e as empresas norte-americanas não podem deixar de estar interessadas.
Na resposta imediata do Ruanda, fontes do Governo de Kigali refutaram, citadas pelas agências, quaisquer ligações ao M23, acusando, por seu lado, a RDC de manter um perigoso apoio à FDLR, os guerrilheiros que vieram do Ruanda para o leste do Congo após o genocídio de 1994, formado essencialmente por Hutus, a maioria ruandesa que esteve por detrás da morte de mais de 800 mil pessoas, na sua esmagadora maioria de etnia Tutsi.
A nova política dos EUA para África
Neste périplo africano, Antony Blinken visa, prioritariamente, convencer os países do continente subsaarianos de que o estreitamento das relações com Washington tem kais vantagens que quaisquer aproximações à China ou à Rússia, países que, especialmente as chineses, têm ocupado de forma gradual mas sólida o espaço de influência que outrora pertenceu aos EUA e aos seus aliados europeus e antigas colonizadores, especialmente franceses e britânicos.
Essa nova estratégia americana, que procura recuperar tempo perdido, assenta em pilares bem conhecidos da política passada dos EUA no continente, que é a aposta na democracia e no incentivo à abertura democrática, apoio ao desenvolvimento económico e o ataque às alterações climáticas.
Isso mesmo foi explicado por Blinken na sua apresentação na África do Sul, onde disse que é fundamental que os EUA e os países africanos trabalhem junto e como parceiros iguais de forma a ser possível atingir estes objectivos.
Recorde-se que uma das diferenças mais impactantes entre a postura de Washington para com o continente africano e a forma de actuar de Pequim e Moscovo é que os EUA perseguem claramente a abertura democrática dos seus parceiros, insistindo igualmente na liberalização económica, enquanto russos e chineses apostam numa política de cooperação sem ligação às questões políticas ou de regime, sem imposições.
Blinken criticou isso mesmo ao defender que "com muita frequência os países afrcianos têm sido usados, instrumentalizados, para o progresso de outras nações em vez de verem surgir o seu próprio progresso", uma acusação clara e inequívoca a Pequim e a Moscovo.
"Os EUA não vão ditar as escolhas dos africanos, nem isso pode ser feito por quaisquer outros. O direito de fazer essas escolhas é dos africanos e apenas dos africanos", disse, o que permite traduzir por uma mudança bastante acentuada naquilo que tem sido a postura de Washington nas últimas décadas, onde o seu apoio e incentivo económico, especialmente no investimento externo em países do continente, é "trocado" por reformas políticas e económicas acentuadamente liberais.
Mas um dos pilares em que assenta esta nova estratégia dos EUA é, precisamente, a questão da democracia e do incentivo à abertura democrática, o que alguns analistas têm apontado como a grande "confusão" que a diplomacia americana alimenta em África, embora Blinken tenha lembrado que as "democracias menos sólidas e a corrupção inerente a essa condição faça com que esses países fiquem menos protegidos de fenómenos como os extremismos ou aos interesses estrangeiros".
E prometeu que, desta feita, os EUA buscam em África parcerias entre iguais e não relações desequilibradas assentes em relações visando unicamente as transacções.
Com estas palavras, Blinken deixou claro que está a ocorrer uma mudança de agulha na política externa dos EUA com a chegada ao poder da Administração de Joe Biden, especialmente para com o continente africano, o que contrasta claramente com os mandatos de Donald Trump, mas também dos anteriores, incluindo o "africano" Barack Obama. Mas falta ver para crer.
Até porque, com a guerra na Ucrânia, e com a tensão no Mar do Sul da China devido à questão que envolve Taiwan e a China, e com uma mudança defendida por Moscovo e Pequim da "ordem mundial", os 54 países africanos ganharam claramente uma importância estratégica única, face aos vastos recursos naturais, que pode, no limite, conduzir a ganhos jamais vistos, seja no âmbito da transferência de tecnologia, seja no investimento externo.
Com o tempo ver-se-á se os africanos souberam jogar este intrincado jogo de xadrez global, onde, devido às mudanças no mapa-mundo da influência geoestratégica, deixaram de estar como "peões", assumindo claramente as "casas" ao lado do "rei". E o próximo movimento pode ser... xeque-mate.