Num cenário com ingredientes que puxam os nervos para a flor da pele, o Presidente João Lourenço voltou a vestir a camisa de "campeão da paz e da estabilidade em África" que lhe foi oferecida pela União Africana e voltou a convidar para a capital angolana os protagonistas desta crise que ainda vai no adro mas que tem um potencial inigualável para incendiar as pradarias e as florestas da África Central como nenhum outro.
Este fio narrativo que pode levar a um final infeliz, tem um contexto que se alastra no tempo até à distante década de 1990 mas que ganhou um vigor incandescente nos últimos tempos, especialmente a partir de meados de 2021...
As coisas aqueceram quase a ponto de ebulição nos últimos meses com manifestações populares em várias cidades congolesas onde centenas de milhares de pessoas exigiram uma resposta forte e à altura do Governo congolês face às agressões do Ruanda no seu território, seja por tropas do seu Exército, na linha de fronteira, seja através dos guerrilheiros do Movimento 23 de Março (M23), nas províncias do Kivu Norte e Kivu Sul, com o propósito, acusa Kinshasa de, através da instabilidade militarizada, criar condições para se apropriar de território da RDC.
E entraram em ebulição na passada quinta-feira, quando o Presidente da RDC, Félix Tshisekedi, fortemente pressionado pelas facções mais radicais do seu Governo e da sociedade civil, como o demonstram as recentes manifestações de grande dimensão que tiveram lugar em cidades como KIsnhasa, Gbadolite ou, entre outras, Lubumbashi, apelou à mobilização da população contra a "agressão ruandesa" protagonizada via M23 no território do Kivu Norte.
Numa mensagem lida na televisão e na rádio públicas da RDC, a RTNC, Tshisekedi lançou este forte apelo à mobilização, que pode ser traduzido por um apelo à resposta armada à hostilidade que alega ter como fomentador o Governo de Paul Kagame, do Ruanda, acrescentando: "Nós devemos, juntos, ganhar consciência de que mais ninguém defenderá a nossa Nação senão nós mesmos e isso exige que todos nós nos mobilizemos" para a defesa do país.
Félix Tshisekedi disse ainda nesta nota lida na televisão e na rádio congolesas, que os congoleses "não podem duvidar juntos podem mudar o mundo", reforçando o Chefe de Estado o seu compromisso com a defesa intransigente da Pátria congolesa, "até ao sacrifício supremo".
O líder congolês faça mesmo de uma guerra de agressão que já provocou deslocações de população trágicas envolvendo mais de 200 mil pessoas e um drama humanitário crescente, apontando o dedo aos "agressores" acusando-os de estarem a "ocupar território da RDC no Kivu Norte", na região de Rutshuru, onde se travam fortes combates.
"Temos milhares de compatriotas a fugir das suas casas, sem comida, sem abrigo e sem cuidados de saúde, a fugirem de terroristas", alertou o Presidente Tshisekedi, reafirmando que estão a ser criadas as condições para dar respostas às necessidades destas pessoas.
Segundo avança a Radio Okapi, uma rádio criada pelas Nações Unidas, na RDC, Félix Tshisekedi, para "fazer face a esta guerra de agressão", apelou a todos os elementos das FATDC e da Polícia Nacional a evidenciarem o seu patriotismo "defendendo a todo o custo a integridade do território nacional" e garantir a "segurança de todos os congoleses" de "todos os ataques, venham eles de onde vierem".
"A guerra que nos está a ser imposta pelos nossos vizinhos (Ruanda) exige a todos os congoleses sacrifícios e este é o momento de anular as divergências políticas internas para lidar com esta ameaça externa e defender a nossa Pátria mãe", avisou o Chefe de Estado naquilo que é claramente uma retórica de Estado em guerra, assumindo que "mais uma vez o povo congolês vai sair vitorioso deste desafio histórico".
A piorar este contexto, já por natureza complexo, a missão da ONU na RDC, apesar de ser a mais custosa e mais alargada em todo o mundo, a MONUSCO, tem sido fortemente contestada, e mesmo alvo de ataques populares, pela sua ineficácia a travar a acção das guerrilhas no leste da RDC, embora tenha nos seus estatutos, a componente militar de combate, contando, para isso, com um contingente alargado e equipamento igualmente substantivo, incluindo helicópteros de ataque e blindados
A tábua de salvação oferecida pela diplomacia
Este é um cenário de iminente guerra aberta entre a RDC e o Ruanda, num dos mais instáveis contextos geográficos do mundo, onde desde a década de 1990, depois do genocídio de 800 mil tutsis às mãos da maioria Hutu ruandesa, em 1994, com o seguimento de instabilidade gerado pela criação de vários grupos armados, desde logo a FDLR (ruandesa) ou a ADF (ugandesa) ou o M23 (congolês/ruandês), entre muitos outros.
Face a este histórico e contexto, um conflito aberto entre estes dois vizinhos alastraria rapidamente por toda a África Central, estando a diplomacia à procura uma saída mas enquanto tal não sucede, os vizinhos colocam forças no terreno para uma eventual interposição que impeça a explosão deste barril de pólvora que o antigo Presidente da RDC, Joseph Kabila disse ter potencial para "desestabilizar todo o mundo, não apenas África" devido à sua importância estratégica como fornecedor de recursos naturais absolutamente vitais para toda a Humanidade, desde logo os incontornáveis para as novas indústrias tecnológicas coltão e cobalto.
O Quénia, o vizinho do leste, com a postura interventiva do novo Presidente, William Ruto, optou por enviar tropa para o leste do Congo de forma a travar eventuais impetuosidades externas à RDC, como ficou, de resto, definido na recente reunião da Comunidade da África do Leste (EAC, sigla em inglês), que teve lugar em Nairobi, que serviu exclusivamente para analisar a situação de extrema tensão no leste congolês, embora esta força de interposição deva, de acordo com a decisão de 20 de Junho, envolver ainda tropas de outros países da região, esperando-se a todo o momento o anúncio desses contributos.
Depois, a 06 de Julho, o Presidente Tshisekedi e o Presidente Kagame, aceitaram encontrar-se em Luanda, a convite de João Lourenço, para uma Cimeira Tripartida, onde, sob os auspícios da Conferência Internacional da Região dos Grandes Lagos (CIRGL), foi assinado um documento norteador dos passos para alcançar a paz, embora seja hoje claro que entre os envolvidos, surgiram actos de contravapor para que esse objectivo fosse alcançado.
Já em Outubro, foi o Presidente francês, Emmanuel Macron, que conseguiu juntar os dois lideres regionais, Kagame e Tshisekedi, durante a Assembleia-Geral da ONU, em Nova Iorque, onde, novamente, os princípios norteadores de um cessar-fogo foram assumidos por ambos os Chefes de Estado, que inclua a diluição imediata do M23 das suas posições, mas, mais uma vez, como o comprovam os últimos acontecimentos, alguém torpedeou este processo internamente.
Face a este intenso mas infrutífero esforço diplomático, Tshisekedi lamentou que a paz não esteja a ser a opção primeira, sublinhando que da sua parte estão a ser feitos todos os esforços.
Recorde-se que o Governo ruandês desde o início deste conflito latente, por vezes, aberto, outras, mas sem que tenha ainda chegado à condição de guerra total, sempre negou quaisquer intenções de desestabilizar o leste congolês e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Vicent Birunda, disse, citado pela France 24, em Julho, que Kigali quer uma redução das tensões com a RDC, admitindo, todavia, que estas aumentam a cada dia que passa.
Mais, Vicent Birunda afirmou mesmo que o Ruanda "ripostará de imediato em caso de qualquer agressão a partir da RDC".
Luanda, a derradeira oportunidade para a paz
Num cenário com estes ingredientes a puxar os nervos para a flor da pele, o Presidente João Lourenço envergou a camisa de "campeão da paz e da estabilidade em África" que lhe foi entregue pela União Africana e voltou a convidar para a capital angolana os protagonistas desta crise que ainda vai no adro mas que tem um potencial inigualável para incendiar as pradarias e as florestas da África Central como nenhum outro.
Com os ministros dos Negócios Estrangeiros do Ruanda, Vicent Birunda, e da RDC, Christophe Lutundula, que é ainda vice-primeiro-ministro, amesados por Téte António, o responsável pelo diplomacia angolana, juntos em Luanda, foi possível chegar a mais um comunicado final que marca mais esta tripartida considerada essencial para desbravar terras para planar a estabilidade nos Grandes Lagos.
No arranque dos trabalhos, João Lourenço colocou os pontos nos ís dos objectivos desta tripartida, que era, como o documento substancia, e os próximos dias dirão se correu melhor que as demais já acontecidas, encontrar uma estrada sem obstáculos para a paz fazer o seu percurso.
Paralelamente ao encontro entre os ministros e a introdução feita pelo Presidente angolano, suporte essencial para este renovado "mapa para a paz" nos Grandes Lagos, decorreram encontros no âmbito da inteligência, militar e organizacional, de forma a que as minudências que tantas vezes são apontadas como entraves ao sucesso destes esforços, não possam ser esgrimidos por nenhuma das partes viso que os temas foram igualmente abordados onde a acção efectivamente tem lugar...
E ficou ainda em evidência que o processo de Luanda e de Nairobi são complementares e não autónomos no essencial, que é objectivamente evitar mais um trágico conflito no continente africano, que já vive conflitos de larga escala nas suas mais diversas latitudes, desde logo na República Centro-Africana, nos vários países do Sahel, Mali, Burquina Faso, Níger, Chade, Sudão, na Etiópia ou no agora menos visível mas explosivo potencialmente jogo perigoso em curso entre Marrocos e a Argélia.
Ver links em baixo nesta página para revisitar a cobertura do Novo Jornal à persistente crise no leste da RDC