São habitações precárias feitas de chapas de zinco e, quando muito, com quintais improvisados, que ainda hoje, 20 anos após a construção, resistem aos mais diversos contratempos, desde a queda de chuvas, acompanhadas de lixo, à própria cedência do morro, que vai dando mostras claras de estar a ir- -se com o tempo.
Quem narra as histórias aqui vividas são os poucos sobreviventes que ainda resistem, uma vez que boa parte dos que no início da década de 90 aqui se fixaram, já morreu, como nos relatou Nazaré Domingos João, de 54 anos, natural do Kuanza Norte, e residente há mais de 23 anos por estes lados.
ANOS DE VIDA INTENSA
Vigilante de profissão no Hospital Josina Machel, onde, por razões de saúde, trabalha apenas parte do dia, Nazaré Domingos João é dos poucos adultos que a reportagem do Novo Jornal conseguiu encontrar pelo meio-dia. Uma vez que a grande maioria dos adultos está quase toda, por esta hora, em busca do ganha-pão.
O ambiente é de sol abrasador, mas as crianças, que entretidas brincam, parecem desconhecer os perigos que enfrentam com a presença de grandes quantidades de lixo que é jogado do bairro da Madeira, no distrito do Sambizanga. Nazaré Domingos caminha trémulo e está a esta hora junto de filhos e netos, ao passo que a mulher se encontra a vender na praça do Pombinha, junto ao antigo mercado do Roque Santeiro.
O vigilante do Josina Machel vive hoje assolado pelas consequências de uma trombose sofrida há quatro anos, mas ainda encontra forças para todos os dias descer e subir o morro para chegar à residência onde vive com a família. É da fala hesitante, mas ainda perceptível, deste morador que ouvimos contar algumas histórias dos que aqui estiveram e dos nomes que já só se falam quando recordados.
A VOZ DOS SOBREVIVENTES
Infelizmente as pessoas que eu encontrei aqui já não estão. Já são quase todas falecidas. As crianças que eu vi nascer aqui já me deram netos. A minha primeira filha nasceu em 1990 e já me fez avô. Só para o senhor ter uma ideia, afirma Nazaré Domingos.
Em finais da década de 1980 e início da década de 1990, como nos revela Nazaré Domingos, várias famílias, maioritariamente provenientes de algumas províncias como o Kuanza Norte, Malange, Benguela e Kuanza Sul, e mesmo alguns naturais de Luanda, que tinham partido para a vida militar, habitaram esta parcela das barrocas da Boavista.
A partir da antiga Textang e da ex-cerâmica, na rua Comandante Kima Kienda, é possível vislumbrar um desalinhado de residências construídas com meios precários.
OS MEIOS PRECÁRIOS
A opção pelas chapas de zinco tem afinal um propósito, conforme apurámos: o terreno não oferece muita resistência aos blocos, uma vez que a tendência é ceder ao peso. Este terreno na parte de cima é terra dura, mas um pouco mais abaixo é tudo areia branca.
Se utilizarmos blocos, quando chover a casa é logo destruída, porque a carga que vem lá de cima (do bairro da Madeira) com o lixo destrói tudo, justifica Augusto Simão, um outro morador, aqui residente também há 23 anos e segurança de profissão.
Nazaré Domingos e Augusto Simão, que apenas vive com os netos e a mulher, na sequência da morte prematura dos únicos dois filhos que tinha, são as únicas vozes sobreviventes encontradas pelo Novo Jornal que relatam as histórias deste lado das barrocas com alguma nostalgia, mas não escondem o desejo de largarem essa condição.
À ESPERA DO REGISTO
De acordo com dados recolhidos, até hoje ainda não foi possível registar numa destas residências que aqui estão. Estamos à espera da decisão do governo. Ainda não fomos notificados. A comissão de moradores esteve no ano passado a fazer o registo das residências, mas não chegou aqui a baixo. Parou ali em cima, afirma Maria António Ngungu.
Maria António Ngungu é vítima da enxurrada do Cacuaco que há alguns anos fez vários desalojados. Vive nas barrocas há menos de seis anos e já conheceu as agruras de viver aqui. O terreno onde tinha construído a sua casa cedeu à força das águas que vieram do morro. O grande problema está aqui em baixo.
Quando a água da chuva vem é um grande perigo. Nós ficámos à espera que a comissão nos dissesse alguma coisa, mas eles dizem que esta área pertence à zona das Ingombotas e não do Sambizanga, mas a administração das Ingombotas não diz nada até hoje e estamos mesmo assim, parcela.
AS NOVAS GERAÇÕES
Para as novas gerações, que estão agora entre os 15 e 20 anos, viver com as condições precárias de saneamento, sem água potável, embora com luz eléctrica, não é um mal de todo. Tetinha e Isaura aqui nasceram e cresceram e pouco se incomodam com o cenário que aqui se vislumbra. A vida aqui é normal. A única coisa que é difícil é a água, que tem de ser transportada de muito longe. De resto, vivemos normalmente, assegura a jovem Tetinha, que tem agora 15 anos e está na 5ª classe.
Isaura, apesar de não alinhar de todo no pensamento da vizinha e companheira de infância descreve o cenário como sendo aquele que não é o mais agradável. Mas vivemos aqui mesmo. Nós estudamos, eu por exemplo, pago a propina de 1300 kwanzas para a 6ª classe e ela (aponta para a Tetinha) de 1200 que é da 5ª. E tem sido assim o nosso dia-a-dia, remata.
AS MORTES
Um dos grandes problemas enfrentados por estas famílias é quando há um problema de infelicidade. Devido ao difícil acesso às barrocas, muitos desses moradores são obrigados, em dia de funeral, a manter o corpo dos seus entes queridos na rua principal (rua Comandante Kima Kienda).
Infelizmente, aqui não tem como depois retirar o corpo. Quando as pessoas estão doentes, se morrem no hospital, saem da casa mortuária e ficam na rua principal. Daí são levadas para enterrar. Aqui em cima no morro seria impossível, acrescenta Maria António Ngungu.