O mais-velho Bernardo nasceu no já longínquo ano de 1953. No Huambo. Amanha sal na zona das salinas do Lobito. Está frio, o céu nasceu cinzento, a brisa marítima é incómoda. O aspecto do produto não é agradável: escuro e raspado à mão, perdeu grande parte do seu valor comercial com o abandono da exploração organizada deste recurso. Agora a luta é pela sobrevivência.
Eu vivo no Lobito há onze anos. No bairro Kassai, explica o senhor Bernardo em conversa com a reportagem do Novo Jornal. Enquanto fala português, ao fundo, em tom aparentemente alegre, a entoação em umbundu ganha espaço e entra pelos ouvidos.
Algumas crianças deslocam- -se com baldes escuros, usados, embaciados, apoiados na cabeça. Também elas estão com o mesmo aspecto dos baldes. Trabalham nas salinas e são estas crianças que vão acumulando sal junto ao mais- -velho Bernardo. Ao lado está a sua esposa. Que se vai rindo. E depois diz: Este sal é vendido aos pescadores. Para salgar o peixe. É a única utilização possível.
A descrição está naturalmente afastada da ideia do Lobito enquanto sala de visitas de Angola: é apenas um cliché. Normalmente, os clichés são obtusos e cheios de imperfeições. Mas também costumam ter um fundo de verdade. E um certo romantismo quando achamos que as ideias feitas nos podem descrever a todos de forma igual.
O Lobito é uma mistura de ideias feitas (a Restinga, o Caminho- -de-Ferro de Benguela, o charme natural da zona histórica, a rivalidade com Benguela, a praia, os flamingos) e de zonas obscuras e empoeiradas e, aparentemente, sem grande futuro.
Próximo da zona onde Bernardo, agora com 60 anos marcados no rosto e nos braços e nos olhos, acumula o seu monte de sal, a mãe Susana vende fuba. De milho, claro. Estamos no mercado da Caponte. Ao fundo, toca uma famosa música do brasileiro Djavan. A fuba branca ilumina as vistas. A roupa de fardo esconde o sol atrás das nuvens. O peixe seco exala o cheiro a sal, ao tempo que passou, à panela que se vislumbra nas mãos de um cliente. Mãe Susana vive na Catumbela mas o sustento está no Lobito. São oito filhos que precisam de se alimentar.
O umbundu vai actuando como banda de suporte. Ou como som ambiente que concorre com Djavan. Eu quero ver o pôr-do-sol!, canta o artista brasileiro. Mas ainda são 9 horas da manhã de sábado. 31 de Agosto. O mercado ainda tem poucos clientes. Zinha Rato, que todos os sábados sem excepção faz compras na Caponte, aproxima-se de Susana. Trocam saudações em umbundu. Riem. Zinha Rato é do Sumbe.
Várias influências
Estou aqui há 38 anos. Deixei a minha cidade natal, o Sumbe, porque no pós-25 de Abril, que aconteceu em Portugal, e no período que antecedeu a independência, tive vários problemas. Eu era muito ligada à comunidade de europeus que ali vivia e isso deu origem a uns certos choques. Preferi vir para o Lobito, explica Zinha Rato.
Apesar de toda a família estar em Luanda, Zinha Rato vai vivendo na Caponte. A sua opinião é desassombrada e sem meias palavras. Olhe, eu acho que as sanzalas viraram aldeias e as cidades estão a virar autênticas sanzalas. Mas sinceramente o que mais me preocupa é a saúde e a educação das pessoas. A minha opinião em relação a estes serviços básicos não é nada positiva, frisa.
Toni K. tem 45 anos. Veste roupa de fim-de-semana. Calções, t-shirt, sandálias. Está com ar relaxado debaixo de uma árvore na zona alta da cidade. Observa lá em baixo os mangais, as salinas, o Porto do Lobito, a Restinga. A praia. O Oceano Atlântico. O cenário é perfeito - lá em baixo.
Porque à nossa volta o morro é árido. Não existem ruas mas caminhos. As casas estão organizadas de forma estranha. Umas são antigas. Outras são recentes. O Lobito tem esta divisão que se sente em cada esquina e em cada olhar. A zona baixa - Compão, 28 e Restinga. E a zona alta: Africano, Controle, Bela Vista (entre outros). Tony K. não se aflige com o contexto.
O Lobito está bom. Comemoramos 100 anos com uma cidade muito melhor. Temos mais escolas, mais saúde, as ruas estão asfaltadas. Eu vivo no 28 mas tenho muita família na Bela Vista. Vivi sempre aqui no Lobito, tirando o período que passei em Cuba para fazer um curso militar, recorda Toni. O professor de Matemática da 4ª e 5ª classe tem seis filhos e dois netos. Todos estão no Lobito. Os pais são do Huambo. É estudante universitário.
A cidade, ao contrário do que se possa pensar, tem sido ao longo dos séculos um ponto de confluência de diversas pessoas. Para além das influências europeias (portuguesas, claro, mas também holandesas) é importante registar a forte ligação ao interior. Huambo, Bié, Kwanza Sul, Huíla.
O Lobito tem sido uma cidade comercial. Onde se faziam e fazem negócios. As pessoas vinham do interior para vender os seus produtos junto ao mar. Depois, a construção (e a necessidade de mão-de-obra) do Porto e do Caminho-de-Ferro de Benguela acentuaram esta ligação.
Jorge Arrulo, actual director comercial da SOBA Catumbela (onde se produz a cerveja Cuca), é natural do Katchiungo (Huambo) mas tem passado décadas no eixo Lobito-Benguela. Depois de muito tempo em Luanda, regressou à província e à cidade do Lobito há cerca de três anos.
O Lobito sempre foi uma cidade cosmopolita. Mais cosmopolita do que Benguela. Antes da independência tinha uma movida muito especial. Benguela era mais antiga. Mais conservadora. Mas hoje, enquanto em Benguela as famílias tradicionais sempre mantiveram uma relação com a cidade, o Lobito é um local com nova gente, acredita Arrulo.
José Patrocínio, activista social e coordenador da Organização Não- -Governamental (ONG) Omunga, entra naturalmente em concordância com Jorge Arrulo. Desde que nasci no Lobito já vi os meus vizinhos mudarem duas vezes: primeiro, foram-se embora os meus amigos portugueses. Um dia saí à rua e toda a gente tinha ido embora. Fiquei sem ninguém para brincar. E agora estou a ver os vizinhos do pós-independência, que tinham ficado com as casas abandonadas no tempo colonial, a venderem as suas propriedades para se instalarem noutras zonas, explica.
A cidade cresceu bastante e hoje, segundo a Administração Municipal, o município do Lobito alberga cerca de 1 milhão e 300 mil habitantes. No meio desta explosão, foram acontecendo várias mudanças. Nos últimos três anos noto um crescimento incrível. É muito evidente, considera Jorge Arrulo.
O crescimento é apenas na fachada. Aparentemente tudo mudou. Mas eu acho que os principais desafios continuam a ser os mesmos: mais participação das pessoas nos projectos comuns, mais respeito pelos direitos dos cidadãos, e uma melhor planificação do crescimento da cidade, acredita Patrocínio.
À noite a divisão acentua-se. Três jovens mulheres pretendem ir da Restinga ao bairro Africano. Os táxis oficiais e os candongueiros já recolheram. As alternativas são escassas. Elas apanham boleia. A meio do caminho soltam avisos. Cuidado, estes moços são bandidos. Parecem motoqueiros mas são bandidos. São perigosos. Paulo Sapalo, professor, diz que no bairro onde vive muitos se queixam que o centenário da cidade parece ser apenas do Compão, 28 e Restinga.
À tarde, um polícia corria desalmadamente para evitar que se tirem fotografias na via pública. Desconseguiu. À tarde, as praias da Restinga, lindas como sempre, estavam vazias mas os restaurantes estavam cheios. À tarde, a cidade ganha uma luz lânguida que parece caramelo. À tarde, os flamingos continuam a pousar como se horas não passassem. À tarde, os lobitangas aproveitam para descansar. O barulho reduz substancialmente. Os kupapatas também. O Lobito é deles. Todos.