Foi a 24 de Fevereiro de 2022, faz este Sábado dois anos inteiros, que as forças russas, com filas de blindados e camiões que encheram ecrãs do mundo inteiro semanas a fio, passaram as fronteiras ucranianas para ocupar o leste, alegando a urgência de defender o povo russófilo do Donbass, evitar o "risco existencial" da entrada da Ucrânia na NATO e "desnazificar" o país.
Em menos de duas semanas, as colunas russas ocuparam 20% do território ucraniano, no leste, especialmente nas regiões encostadas à Federação Russa, considerando que a Crimeia já tinha sido ocupada em 2014, quando um golpe de Estado, apoiado pelos Estados Unidos, destronou o Presidente pró-russo, Viktor Yanukovych, abrindo caminho para a chegada ao poder de lideres anti-Rússia, como Petro Poroshenko, primeiro, e depois, em 2019,o actual Chefe de Estado Volodymyr Zelensky.
Todo o ocidente, liderado pelos Estados Unidos no âmbito da NATO, se chegou à frente com armas e dinheiro e apoio político e diplomático, para que a Ucrânia resistisse à invasão russa, permitindo não apenas resistir, como obrigou a então famosa coluna militar com 60 kms, que se dirigia por norte a Kiev, a fazer marcha-atrás.
Estava já assumido no ocidente que a prioridade total e absoluta era, como o disseram repetidamente o Presidente dos EUA, a presidente da Comissão Europeia, Ursula Leyen, ou o chefe da NATO, Jens Stoltenberg, "derrotar a Rússia no campo de batalha", "vergar Moscovo sobre os seus joelhos nas trincheiras" ou transformar a Rússia "num país vulgar" no contexto das potências globais.
Com avanços e recuos, uma contra-ofensiva ucraniana, motorizada pelas "armas maravilha" ocidentais, falhada em 2023, ao cumprirem-se dois anos desta guerra, a memória do seu início impõe-se, inevitavelmente, focando o momento em que russos e ucranianos estavam, em Março de 2022, semanas após a invasão russa, a negociar um acordo de paz, em Istambul, na Turquia.
Já havia notícias de sucesso nas negociações quando, saindo de trás do arbusto na NATO, o então primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, a mando de Washington, chegou a Kiev para obrigar Zelensky a rasgar o acordo com Moscovo e a apostar na guerra, sob a promessa de "apoio até onde for preciso e tudo o que for preciso", não apenas sua mas também de Biden, Ursula Leyen e Stoltenberg.
E, durante um ano e meio, assim foi, de Londres, Washington, Berlim ou Paris, os ucranianos nadaram em dinheiro e armamento sofisticado para fazer frente aos russos... até que esse fluxo vital para a tarefa de Kiev começou a diminuir, ao mesmo tempo que emergiam nos media ocidentais, totalmente empenhados na propaganda anti-russa, as primeiras notícias de escassez de munições nas trincheiras ucranianas, contrastando com a risível imagem criada por esses mesmos medi, no início do conflito, de que as forças russas estavam sem meias, sem botas, sem armas e sem comida, erguendo a imagem do Exército de Moscovo como um bando de mendigos sem eira nem beira.
Sem as armas dos EUA, acaba a resistência de Kiev
Há muito que os especialistas militares referiam que sem o apoio em armamento dos EUA, a Ucrânia não teria qualquer possibilidade de aguentar a pressão russa na linha da frente, e isso mesmo está nesta altura, em que se cumprem dois anos de guerra, a revelar-se verdadeiro, porque o Presidente Joe Biden não consegue fazer passar na Câmara dos Representantes o seu pacote de 60 mil milhões USD para Kiev devido à recusa da oposição republicana.
Sem conseguir fazer chegar a "pólvora" ao seu amigo ucraniano, Joe Biden atira contra o inimigo comum, o Presidente russo Vladimir Putin, a sua artilharia verbal mais pesada, chamando ao chefe do Kremlin "filho da p... maluco", "crazy SOB - son of a bitch", que, no uso comum da expressão refere-se a um "grande sacana".
Foi numa acção de campanha em São Francisco que Joe Biden tirou da cartola este ataque verbal a Putin, e que já levou alguns analistas a recorrerem à ironia para descrever o actual momento do Presidente norte-americano, que está claramente "entalado" entre a impossibilidade de cumprir a sua promessa a Zelensky e a pressão das sondagens que dão larga vantagem a Donald Trump, o mais que provável candidato dos republicanos, nas eleições Presidenciais marcadas para 05 de Novembro próximo, que já disse que não quer nada com Kiev e acaba com a guerra em 24 horas.
A frase em que Biden chama "crazy SOB" a Putin é esta: "Temos um filho da p... maluco como Putin e outros e existe sempre a preocupação de uma guerra nuclear, mas a ameaça existencial para a Humanidade é mesmo a que vem das alterações climáticas".
E há ainda outra "ameaça" existencial, na perspectiva de Biden e dos seus aliados europeus, que estão a ficar sem norte com o esfumar do apoio dos EUA à Ucrânia, ameaçando a União Europeia de ficar com o problema nas mãos, devido ao assumir desse compromisso pela sua presidente da Comissão, a alemã Ursula Leyen.
Isto, quando no seio dos 27 países deste bloco, cresce a insatisfação popular com a guerra e o apoio aos ucranianos, como é disso exemplo a Polónia, o gigante do leste europeu que já foi o mais empenhado aliado de Kiev e hoje está em vias de passar para o lado dos que já não têm paciência para Zelensky devido a questões internas, como as manifestações dos seus agricultores e dos bloqueios das fronteiras com a Ucrânia, mas também na Hungria, na Eslováquia, na Chéquia...
Navalny, o opositor que nem preso deixou em paz o Kremlin
Com a morte de Alexei Navalny, o mais famoso dos opositores a Putin, tanto nos EUA como na Europa, voltou a surgir um ímpeto de alvejar Moscovo com novas e mais pesadas sanções, o que deve ter apanhado Zelensky de surpresa, porque ele próprio estava há semanas a pedir novas sanções contra a Rússia e os seus aliados ocidentais não pareciam estar muito interessados em dar-lhe seguimento...
Ainda não se sabe as causas da morte,de Navalny, na prisão siberiano do Ártico, onde cumpria uma pena de 30 anos, e um das mais severas da Federação Russa, país conhecido pela dureza das suas colónias penais, mas já é evidente que o ocidente e a oposição russa estão em sintonia na bateria de acusações de responsabilidade no seu desaparecimento ao Kremlin e a Putin, o que não é propriamente uma situação confortante quando se aproximam as eleições Presidenciais, marcadas para 15 a 17 de Março.
Há, porem, uma linha de raciocínio que começa a ganhar forma na abordagem a este momento, que é a evidência de que a morte de Navalny está a concentrar as atenções dos media ocidentais, disputando, no mínimo, os destaques com os dois anos de guerra e a falta de apoio ocidental a Kiev.
Ou seja, a morte de Navalny está a permitir aos EUA e à Europa ocidental focar as suas atenções, levando os media atrás, no apontar do dedo a Putin, desviando as atenções da fragilidade cada vez mais evidente da Ucrânia na linha da frente da guerra por causa da falha clamorosa no fluxo de apoio em armas e dinheiros dos aliados da NATO.
Isto, porque, depois da faiscante vitória russa em Avdiivka, uma cidade com "cartaz" de estratégica, porque era dali que os ucranianos flagelavam a cidade de Donetsk, as forças do Krempin parecem ter ganho uma nova impetuosidade e estão a avançar em vários locais, desde o norte da linha da frente com 1.200 kms, em Karkhiv, ao sul, na região de Kherson, passando por Lugansk e Zaporizhia.
A Ucrânia, como o próprio Presidente Zelensky já veio admitir publicamente, numa demonstração de fragilidade incomum, esta a atravessar a sua fase mais difícil deste conflito e em risco de colapsar, por falta de armas ocidentais, identifica o chefe do regime de Kiev, mas também, como sublinham diversos analistas, por falta de capacidade de recrutamento para colmatar as brechas nas fileiras causadas pelas elevadas baixas nos combates em curso.
Analisando as diversas fontes que trazem à estampa estes dados, o número de mortos e incapacitados para combate do lado ucraniano já ultrapassou largamente os 500 mil, o que obriga a um permanente recrutamento contínuo, permitido pela Lei Marcial em vigor no país, mas que não está a tero sucesso esperado, porque há cada vez mais homens a deixar o país, mas também porque as comunidades se estão a organizar para resistir ás brigadas especiais do Exército para capturar homens para as suas fileiras, havendo mesmo vídeos de violência séria.
Do lado russo, os dados não são diferentes, excepto atendendo ao facto de que a guerra na Federação parece ter mais receptividade, e o universo de recrutamento, mais de 150 milhões de pessoas, é muito superior ao ucraniano, menos de 30 milhões actualmente, depois dos quase dez milhões que saíram com o início do conflito.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.