Importa reter-se que a construção da Quilemba Solar havia sido aprovada pelo Decreto Presidencial (DP) n.º 179/22, de 22 de Julho, como uma concessão em regime BOT (Build, Operate and Transfer) para a Sociedade Quilemba Solar Limited, um consórcio então constituído pelas companhias TotalEnergies (51%), Sonangol (30%) e GreenTech Angola (19%). A aprovação como concessão decorreu de um imperativo legal, pois a Lei de Delimitação dos Sectores da Actividade Económica (Lei n.º 25/21, de 18 de Outubro) enquadra as actividades de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica para o consumo público sob a Reserva Relativa, de modo que só podem ser exercidas por meio de concessão. Por outro lado, o referido DP que aprova a concessão dispõe que a aquisição da electricidade da central será feita pela Empresa Rede Nacional de Transporte de Electricidade (RNT, E.P.), com base num contrato a celebrar com a Sociedade Quilemba Solar Lda., cuja minuta foi aprovada em sede do mesmo DP. As disposições estabelecem ainda que "a tarifa para a aquisição de energia eléctrica deve ser determinada no âmbito do Contrato de Aquisição de Electricidade, que constitui o anexo ao Contrato de Concessão e deve ser calculada de modo a garantir a cobertura e o adequado retorno do investimento feito pelo promotor e a defesa do interesse público" 2.
Então, a assinatura do contrato de concessão ocorreu a 22 de Setembro de 2022 pela TotalEnergies, Sonangol E.P. e GreenTech - não havendo qualquer informação sobre as razões, os termos e o momento da substituição desta última pela Maurel & Prom - e previa-se, na altura, a entrada em funcionamento da central no segundo semestre de 2023. Na mesma data, paralelamente, foi assinado com o Ministério da Energia e Águas (MINEA) o contrato de aquisição de energia pela RNT, E.P., onde se estabeleceram as condições de venda da electricidade produzida ao longo dos 25 anos da concessão3. Subsequentemente, a 8 de Janeiro de 2025, veio a ser assinada, entre a Quilemba Solar Lda. (TotalEnergies, Sonangol E.P. e GreenTech) e a RNT, E.P., "uma Adenda às Peças Técnicas Complementares ao Contrato de Aquisição de Energia (CAE) do projecto fotovoltaico"4 , cuja construção viu então a primeira pedra lançada a 16 de Maio passado.
Acontece que, a 7 de Junho de 2022 - 45 dias antes da emissão do DP da concessão -, responsáveis do Ministério da Energia e Águas, em particular o Presidente do Conselho de Administração da RNT, E.P. (cf. o vídeo do link, no intervalo de tempo 1:37:18 - 1:42:33: https://youtu.be/bKYLN0q4KoE), haviam relevado a existência de um "imbróglio" que condicionava a implementação de projectos privados de produção independente de electricidade, que tivessem como offtaker a RNT, E.P.. O "imbróglio" consistia no seguinte: (i) Angola dispor de capacidade de produção de electricidade que excede as necessidades correntes de consumo, pelo que não era justificada a injecção de mais capacidade na rede; (ii) a energia colocada na rede pública, sob gestão da RNT, pela Empresa Pública de Produção de Electricidade (PRODEL, E.P.) ser relativamente barata, o que se apresenta como um desafio de competitividade para os eventuais projectos de produtores privados independentes que queiram vender electricidade à RNT; e (iii) pelas duas razões anteriores, projectos de produção independente de electricidade justificarem-se apenas para localidades que não possam ser interligadas à rede nacional. Então, o surgimento do projecto Quilemba Solar parece sugerir que o "imbróglio" então identificado tenha sido resolvido. O facto, porém, é que isso não corresponderá à verdade, como se poderá perceber da discussão que se segue.
No que corresponde à capacidade de produção de electricidade, conforme dados do MINEA, ela está avaliada em cerca de 6,2 GW, sendo que a taxa de cobertura é de apenas cerca de 44%, representando um consumo próximo dos 2,5 GW, almejando-se atingir apenas 50% de cobertura até 2027, altura em que a capacidade de produção deverá rondar os 9 GW, com a conclusão da barragem de Caculo Cabaça prevista para 2026. Portanto, a capacidade nacional de geração de electricidade continua e continuará a ultrapassar as necessidades correntes de consumo.
Tendo em atenção que se reporta que Quilemba Solar vai levar à redução do consumo de combustíveis para a geração de electricidade de fontes térmicas em 29 milhões de litros por ano, poderia sustentar-se a relevância do projecto por esse facto, já que, aparentemente, se substituirá a produção térmica por uma de fonte limpa. Contudo, os dados das autoridades reportam uma capacidade de produção actual de fontes renováveis de 66% da produção total, o que corresponde a cerca de 4,1 GW. Então, ante um consumo actual de perto de 2,5 GW, tem-se um excedente de perto de 46 vezes a potência inicial e 20 vezes a potência total do Quilemba Solar. E porque as localidades beneficiárias da electricidade do projecto são interligáveis à rede nacional, restaria então demonstrar-se que, numa análise custos-benefícios, o investimento na solução de produção independente suplanta a alternativa de fazer-se chegar a electricidade da capacidade ociosa existente da rede à localidade visada. Mas isso não seria, ainda, o fim. É que, em nome da transparência e da qualidade dos contratos e do nível de serviços e preços, as boas práticas recomendam fazer-se concessões desse tipo via concurso público, em vez de propostas não solicitadas recebidas - como terá sido, eventualmente, o caso do Quilemba Solar -, sendo que o preço de oferta da electricidade pelos concorrentes é um dos factores preponderantes para a outorga do contrato. Não tendo sido esse o caso, fica por se compreender se o preço a pagar pela RNT será, de facto, competitivo, comparado com o pago à PRODEL ou com o que resultaria de um concurso público. Mas, aqui importa notar que o DP que aprova a concessão dispôs, de modo peremptório, que "a tarifa para a aquisição de energia eléctrica (...) deve ser calculada de modo a garantir a cobertura e o adequado retorno do investimento feito pelo promotor e a defesa do interesse público". Isso significa que a tarifa acomodará quaisquer custos de investimento e um "adequado retorno", pelo que o investidor não correrá qualquer risco nem terá incentivo para ser eficiente no investimento, estando, por isso, afastada qualquer possibilidade de preço competitivo. Então, uma tal opção não terá decorrido eventualmente de uma decisão empresarial da gestão da RNT, mas politicamente imposta à empresa. Num cenário de governação das empresas públicas desse tipo, compreende-se que os seus gestores não se sintam motivados para a prossecução de uma gestão eficiente e eficaz, ao mesmo tempo que se sentem desresponsabilizados pelos resultados e situação das respectivas empresas.
A definição de uma tarifa de compra da electricidade ao produtor independente pela RNT, E.P. nos termos indicados traz-nos à memoria o flop que foi a mecanismo de estabelecimento dos preços dos produtos refinados do petróleo bruto à saída Refinaria de Luanda (preço ex-refinaria), os quais serviram, por largos anos, de referência para a fixação dos preços dos combustíveis derivados do petróleo bruto, quaisquer que fossem a sua origem: produção interna ou importados. Conforme tal mecanismo - que foi definido num protocolo assinado entre o Estado colonial e a Fina Petróleos de Angola, aquele depois substituído pelo Estado angolano na Angola independente, a partir de 1975 - o preço ex-refinaria era estabelecido com a incorporação das seguintes componentes: (i) o custo das ramas (petróleo bruto); (ii) os custos de transformação; (iii) um montante de lucro líquido equivalente a 5% do valor estimado do imobilizado ao custo de aquisição, e (iv) um montante de impostos de 65% calculados sobre o lucro bruto (este calculado por uma extrapolação que toma o montante considerado como lucro líquido como representando 35% do lucro bruto). O entendimento que havia era de que o critério estabelecido para a determinação do lucro líquido da refinaria constituiria um incentivo para que realizasse investimentos de renovação e modernização requeridos, dado que com eles ocorreria o aumento do valor do imobilizado e, consequentemente o montante em termos absolutos que a empresa obteria como lucro.
Parece óbvio que, uma vez que o lucro não era obtido pela diferença entre os proveitos e os custos da firma e os impostos não eram calculados sobre uma matéria colectável determinada com base no lucro assim determinado, mas ambos, lucro e impostos, eram mark-ups sobre qualquer que fosse o valor do imobilizado ao custo de aquisição, ela não tinha qualquer incentivo para a eficiência mas para a acomodação. Foi deste modo que a Refinaria de Luanda veio a atingir um elevado nível de obsolência, que, associado à existência de pessoal excedentário, tornaram-na altamente ineficiente, com os custos suportados directamente pelos consumidores ou indirectamente via subvenções do Estado. Com a Quilemba Solar, essa procissão parece continuar...
1 Cf. em: https://www.sonangol.co.ao/primeira-pedra-da-central-solar-quilemba-lancada-no-lubango/. 2 Cf. o n.º 2 do artigo 5.º. 3 Cf. em: https://www.sonangol.co.ao/sonangol-assina-contrato-de-concessao-da-central-fotovoltaica-de-quilemba. 4 Ver em: https://www.sonangol.co.ao/quilemba-solar-vai-fornecer-energia-a-rede-nacional-de-electricidade/.
*Economista