As autoridades ugandesas já deixaram claro que os rebeldes da Aliança das Forças Democráticas (ADF, sigla em inglês) são, com escassa margem para a dúvida, os autores dos ataques-suicidas de terça-feira em Kampala, o que vem dar consistência à informação existente de que o `estado islâmico" tomou conta desta organização rebelde, originária do Uganda, e que actua na região dos Grandes Lagos desde a década de 1990, tendo sido criada no rasto do genocídio de 800 mil tutsis no vizinho Ruanda pela maioria Hutu, em 1994.

Esta deslocação da actividade jihadista do ISIS, ou estado islâmico, para a África Central já tinha sido referenciada pela Conferência Episcopal Nacional da RDC (CENCO), que, como o Novo Jornal noticiou aqui, mostrava a sua preocupação pelo avanço dos radicais islâmicos nesta geografia já de si atafulhada em violência de várias géneses, tendo os bispos católicos congoleses pedido acção imediata por parte dos governos da região mas também da ONU e da União Africana.

Isto, porque os prelados sabem que o leste da RDC, mas também os vizinhos Uganda, Ruanda e Burundi têm mostrado constituir uma região altamente porosa à actividade de múltiplas guerrilhas e milícias armadas, como a ADF, mas também a FDLR (origem no Ruanda) que, em quase três décadas, não foi possível controlar, o que deixa como perspectiva sombria que o `estado islâmico" terá ali um cenário perfeitoganhar influência geográfica e um refúgio seguro para os seus combatentes que ainda actuam na África Oriental, Somália, Quénia... e no Sahel, Mali, Burkina Faso ou mesmo no Níger.

Este ataque concertado em Kampala, que ainda não foi reivindicado mas que as autoridades ugandesas, como o deixou claro o porta-voz da polícia do país, Fred Enanga, tem todas as marcas do modus operandi dos radicais do `estado islâmico", é, claramente, mais uma dor de cabeça para as organizações sub-regionais, como a Comunidade Económica da África Central (CEEAC) ou a Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL), ambas integradas por Angola e esta última actualmente presidida por João Lourenço.

O esforço de Angola

O Presidente angolano tem mesmo feito da estabilização dos Grandes Lagos um dos seus cavalos de batalha na frente externa, desde logo pelas várias cimeiras da CIRGL que realizou em Luanda, com vista à procura de consolidar a paz nesta geografia, mesmo que acentuando a questão da República Centro-Africana, mas também demonstrando esse empenho com o denominado Memorando de Luanda, que agregou os Presidentes do Uganda e do Ruanda no esforço conjunto para resolver as razões dos constantes atritos fronteiriços entre os dois exércitos destes dois pequenos Estados dos Grandes Lagos.

E esta aterragem com estrondo do `estado islâmico" no coração da CIRGL é mais um pesadelo para todos aqueles envolvidos nos esforços de pacificação da sub-região, mas também um sinal de alerta sublinhado a traço grosso para os restantes países que podem, devido à evidente fragilidade social, fraca organização das forças de Defesa e Segurança ou porosidade das suas fronteiras.

O Presidente angolano tem, aqui, mais uma pedra para a sua almofada, dificultando-lhe o sono? Sobre isso restam poucas dúvidas. O que falta saber é quais vão seros próximos passos do líder da CIRGL, se vai enfrentar mais este problema quando as questões escaldantes em cima da mesa, como a da RCA estão longe de deixarem de constituir um problema pesado.

Mas uma coisa parece não estar a atormentar ainda mais as noites de João Lourenço, que é o facto, quase seguro a 100 por cento, de que estes ataques em Kampala nada têm a ver com os problemas recorrentes entre as forças de segurança e Defesa do Uganda e do Ruanda, como deixaram como promessa no Memorando de Luanda, assinado em 21 de Agosto de 2019, os Presidentes Yoweri Musevini e Paul Kagame.

Isto, porque, no day after a estes ataques na capital ugandesa, que não sendo caso único, porque já outros tiveram lugar, como foi o caso a 25 de Outubro último, onde uma pessoa morreu num ataque à bomba, também ligado ao ISIS, o que fica como referência é o surgimento de bombistas suicidas como método de espalhar o terror neste pequeno país da África Central, que, ao que tudo indica, é a nova frente de batalha do jihadismo global.

Os analistas estão, de forma geral, a olhar para esta chegada estridente do ISIS aos Grandes Lagos como resultado do sucesso das forças que combatem os jihadistas que há anos espalham terror no Sahel, especialmente no Mali, onde forças de vários países, liderados pela França, têm ganhado terreno aos radicais, mas também no Corno de África, com o Al Shabab ou mesmo na Nigéria, com o Boko Haram, todos ligados ao ISIS ou à al qaeda, encontram cada vez mais dificuldades no terreno.

Face a este cenário, que vem ainda de mais longe na sua génese, com o desmantelamento do ISIS no Médio Oriente (Síria e Iraque), os lideres jihadistas têm procurado novas fronteiras de refúgio e de reorganização, sendo o risco maior se os Grandes Lagos, aproveitando a desorganização e a ausência de controlo estatal em vastas áreas da RDC, especialmente no leste, mas também nos vizinhos RCA e Sudão do Sul.

O risco do terror "pandémico"

No que diz respeito a Angola, ou mesmo à Zâmbia, países com fronteiras com a RDC mas que, devido à distância, podem estar mais defendidos do impacto directo, o risco é de, como notam alguns especialistas citados em boletins de inteligência, devido à melhor organização e capacidade logística do ISIS, os usar para prolongar os seus braços comerciais e ou de lavagem de dinheiro.

E a diversificação do combate pela estabilidade dos Grandes Lagos, como o presidente da CIRGL e de Angola tem sublinhado, quer seja nas cimeiras de Luanda sobre a RCA, quer seja no momento da assinatura do Memorando de Luanda envolvendo Uganda e Ruanda, faz agora cada vez mais sentido.

Essa percepção esteve mesmo em evidência em Luanda, a 21 de Agosto de 2019, quando João Lourenço, no discurso a propósito do Memorando entre Kagame e Musevini, falou na necessidade de alargar o olhar para as outras fontes de instabilidade na região, nomeadamente as múltiplas guerrilhas e milícias armadas, com diferentes origens geográficas e étnicas.

Outro risco sublinhado por especialistas é se o ISIS, mais uma vez fruto da sua maior e melhor organização, conseguir penetrar as outras organizações que actuam nos Grandes Lagos, como, por exemplo, o Movimento M23, fortemente impregnado nos espaços rurais do leste da RDC, ou ainda as Forças Democráticas de Libertação do Ruanda (FDLR), com raízes no Ruanda, o que daria aos jihadistas um poder e abrangência significativamente mais difícil de enfrentar.

Mas também isso, segundo se ficou a saber em Agosto de 2019, estava previsto no Memorando, que visava ainda a extensão dos acordos à criação de condições para o desenvolvimento da região, a integração de todos aqueles que fizeram da participação nas guerrilhas e nos grupos de milícias em actividades económicas atractivas, fechar os canais de apoio e financiamento a este grupos e lançar as bases para uma efectiva integração regional.

Se este "plano" for, efectivamente, aplicado, depois do intervalo forçado pelo surgimento da pandemia da Covid-19, então as raízes "naturais" da expansão do ISIS poderão, efectivamente, ser cortadas, ou pelo menos, menos alimentadas para diminuir o seu crescimento que pode radicalizar e desestabilizar ainda mais esta vasta região, já de si das mais escaldantes do mundo.