Nana Akufo-Addo, o Presidente do Gana, foi clarinho como a água quando, na abertura da Cimeira de Líderes EUA-África, que decorre em Washington até quinta-feira - começou na terça-feira - disse que o continente africano, "se quiser contar com o respeito do ocidente, não pode andar de mão estendida", indo ligeiramente mais longe, ao clamar para que os países africanos deixem de se comportar como "pedintes" porque só assim será possível "mudar a percepção que existe no ocidente sobre os africanos".
Mas Akufo-Addo acrescentou peso às suas palavras com um severo recado para o interior do continente africano, defendendo que chegou o tempo de ver os africanos a gastarem o seu dinheiro em África e não a levá-lo para o exterior.
Citado pelo AfricaNews, o Presidente ganês atirou ainda, certeiro: "Se deixarmos de nos comportar como pedintes e passarmos a gastar o nosso dinheiro em África, o continente não vai precisar de andar a pedir respeito a ninguém, obteremos esse respeito naturalmente, porque é o respeito que merecemos. Se fizermos de África um continente próspero, como já devia ser há muito, o respeito aparecerá naturalmente".
As palavras de Akufo-Addo não são novas nem aparecem na boca de alguém sem passado, até porque, apesar de o Gana ser comummente apontado como um exemplo de sucesso em África, seja na melhoria da qualidade de vida da população, seja na criação de uma economia comparativamente robusta, a verdade é que Accra acaba de obter do Fundo Monetário Internacional (FMI) um empréstimo salvífico, para evitar um colapso mais ruidoso, de 3 mil milhões de dólares.
Entre os perto de meia centena de líderes africanos e alguns representantes de organizações regionais e pan-africanas, está o Presidente João Lourenço, que, como já foi dito por vários elementos da Administração norte-americana, tem um papel de relevo à sua espera neste "regresso" dos EUA a África, não só pela sua presença importante na complexa, mas estratégica região dos Grandes Lagos - basta ver que a RDC com os seus inigualáveis recursos naturais é um vizinho importante de Angola -, como um dos líderes regionais em maior destaque no seio da União Africana, como ficou em evidência ao ser indicado como o seu "Campeão da Paz e da Reconciliação", o que lhe dá um destaque que Washington não pode ignorar, como não pode ignorar que Angola não fica muito longe do Congo-Democrático no que toca às riquezas no seu subsolo e no seu offshore.
Contra-ataque americano não apanhou Moscovo e Pequim distraídos
Este encontro alargado de Joe Biden com os líderes africanos, são poucos os que não estão presentes nesta reunião de três dias - dos 54 países do continente, foram convidados 49 -, como não deixou já de ser observado por alguns analistas, mas também tem já sido sublinhado por especialistas na política norte-americana em África que estes encontros não têm outro valor que não seja criar condições para alicerçar um programa efectivo e eficaz, que não aconteceu na última reunião do género, em 2014, era Barack Obama o inquilino da Casa Branca, que criou muita água na boca entre os africanos mas que resultou numa gigantesca desilusão.
E, como a História não deixou de cravar a ferro em brasa no continente, depois de Obama chegou à Casa Branca o menos inclinado para África de décadas de lideranças norte-americanas, Donald Trump, sendo que foi no seu consulado que a Rússia mais ganhou tracção no grand jeu africano, facto que ainda hoje se prolonga e adensa, como é visível na forma como em alguns países do Sahel, americanos e franceses são fortemente apupados e os russos elogiados; o mesmo tipo de elogio dedicado à China, que se foca na cooperação económica e afasta questões políticas e sociais da mesa das negociações.
Quando Biden mandou divulgar que iria realizar esta Cimeira, há quase um ano, isso não deixou de aparecer nos radares de Moscovo e Pequim, com o Kremlin a enviar vários dos seus diplomatas de topo para sucessivos périplos africanos, sendo que um destes foi mesmo liderado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, tendo a diplomacia chinesa optado por um empenhado mas menos exposto esforço de contenção de danos através dos seus canais diplomáticos bem lubrificados em duas décadas de proximidade única e multibilionária na forma de infindáveis linhas de crédito pagas com recursos naturais que permitiram, em parte, o agigantamento industrial do "gigante" asiático.
Uma das questões mais rugosas para ultrapassar por parte dos EUA são os laços históricos herdados pelo Moscovo de hoje do Moscovo da então União Soviética, que é visível, além da gratidão que alguns líderes africanos não escondem, como o Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, pelo apoio dos russos nas lutas de libertação, mas também os fortíssimos laços na cooperação militar que se traduzem na continuada condição de maior vendedor de equipamento de guerra ao continente, que não pode ser obliterado de um dia para o outro porque há décadas de experiência e formação obtida e mantida com as armas "soviéticas" e trocá-las por norte-americanas exigiria anos a fio de formação e adequação, o que em nada agrada às chefias mais veteranas.
Há, no entanto, sinais de que alguns Estados africanos podem estar a repensar a sua posição, especialmente bem-vinda para Washington agora que está em curso uma das mais catastróficas guerras na Europa em décadas e que opõe directamente a Rússia e a Ucrânia, mas que, na verdade, é um confronto militar entre equipamento ocidental (NATO/EUA) e a capacidade bélica da Federação Russa, como se viu quando, na última das resoluções aprovadas na ONU condenando Moscovo, alguns países, entre estes Angola, alteraram o seu voto, adequando-o aos interesses dos Estados Unidos - autor da resolução -, embora esses votos pouco ou nada tenham alterado na correlação de forças na Assembleia-Geral das Nações Unidas, excepto no campo simbólico, sendo aí Luanda o caso mais interessante pelo vasto passado que une Angola e a Rússia.
Facto sem réplica é que o continente africano é hoje o mapa de algumas das mais exigentes disputas por influência geoestratégica em todo o mundo, não só porque é no continente africano que estão localizadas algumas das quase exclusivas reservas de minérios fundamentais e insubstituíveis - como o conjunto de minerais denominados terras raras, ou como o coltão, com 80% dos stocks conhecidos na RDC, ou o cobalto -, nas novas tecnologias e indústrias de ponta, na transição energética que pode salvar o mundo das alterações climáticas ou os velhinhos mas persistentes na sua importância planetária: ouro, diamantes, gás, petróleo, mercúrio, fosfatos, tungsténio...
E se, como os ministros chinês e russo dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi e Sergei Lavrov, deixaram claro num encontro no início deste ano, pouco depois do arranque da guerra na Ucrânia, o que está em causa é a criação de uma nova ordem mundial, com o ocidente de um lado e um eixo Pequim-Moscovo fortificado com ligações sólidas aos BRICS, e do outro o chamado ocidente alargado - EUA, União Europeia, Austrália, Japão...-, então, o papel de África é muito mais que o de fornecedor de matérias-primas, pode mesmo ser o fiel da balança, o que não deixa de ser irónico, como alguns analistas já admitem, porque basta os africanos saberem negociar e trabalhar os corredores, para serem os grandes vencedores desta disputa global de titãs...
E Angola pode e deve estar na linha da frente deste novo capítulo na História do continente, até porque, como disse, citado pelo AfricaNews, Ervin Massinga, do Gabinete dos Assuntos Africanos no Departamento de Estado, em Washington sabe-se que "muito está a acontecer em Angola, há muito potencial no ar" e não só nas áreas tradicionais do petróleo e dos gás, atirando a isca mais apetecida na Cidade Alta, que é a disponibilidade para atrair para Luanda investimento norte-americano, especialmente nas telecomunicações, sector dos medicamentos e na indústria...
Isto, depois de João Lourenço ter recebido em audiências os secretários de Estado, Anthony Blinken, e da Defesa, Lloyd Austin, em que o Chefe de Estado angolano repetiu com renovado empenho a condição de abertura de Angola para o investimento estrangeiro, o que acompanha com um conjunto alargado de reformas económicas e políticas que os americanos podem comprovar ouvindo o embaixador norte-americano em Luanda, Tulinabo S. Mushingi, nascido no Congo, que não se tem poupado a esforços para elogiar a governação angokana nesse aspecto.
E depois destes encontros, Lourenço frisou isso mesmo o facto de Angola estar a dar sinais claros de que está apostada em reforçar a cooperação com os EUA, com passos responsáveis que dão corpo a um ponto de viragem na forma como Luanda olha para as suas relações externas, de forma consciente face ao histórico do relacionamento com Washington, que é de todos conhecido porque, ao longo de anos de guerra civil, ocupavam "barricadas" distintas e importantes no computo da Guerra Fria.
Mas, e o que pode África trazer de Washington ?
Para começar, um lugar à mesa. Um lugar à mesa de tudo quanto for tomada de decisões com impacto global ou regional, onde estejam em causa interesses do continente.
E se os EUA, de per si, não concedem este tipo de acessos, sem o seu apoio dificilmente se conseguem, desde logo onde as coisas mexem e o que se decide mexe com o mundo, seja no que diz respeito à economia, as reuniões do G20 ou do G7, seja em Breton Woods (FMI-Banco Mundial) e, obviamente, um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, mas também em tudo o que rodeia as alterações climáticas, Direitos Humanos ou a própria democracia e o Estado de Direito, onde África é sempre visto como o "sítio" onde este chega sempre tarde e a más horas.
Uma das questões que urge dar resposta é o porquê da fraca ou inexistente representação africana em algumas das mais faiscantes organizações regionais em todo o mundo, como, por exemplo, a Organização do Indo-Pacífico, onde é Washington que indica o "porteiro".
Mas também podem exigir aos EUA uma mãozinha noutros domínios, que não é "pedinchar" com a mão estendida, como Nana Akufo-Addo, o Presidente do Gana, critica, que é abrir a porta do ocidente para a deslocalização de saberes em torno das novas tecnologias, de forma a que também em África possa sair da longa noite de escuridão simplesmente porque os acessos a esse saber não são facilitados como o são noutros continentes, como se houvesse uma "master mind" a garantir que os países africanos não podem passar da fase de exportadores de matéria-prima, o que de resto tem sido repetido por vários lideres continentais, sendo João Lourenço um deles.
Isso vai ser conseguido? Para já, já não seria pouco perceber-se após quinta-feira, 15, o últimos dos três dias deste "Summit", se os Estados Unidos da América estão a pensar no longo prazo, numa ponte duradoura com África, ou se estão apenas a trabalhar para o curto prazo nesta sua "guerra" de domínio global com chineses e russos.