Há anos que se sabe que os Estados Unidos e a China, as duas maiores potências económicas planetárias e duas das maiores superpotências militares, vivem numa paz presa por arames num confronto de titãs que tem o domínio do mundo como objectivo final e a ilha de Taiwan como principal rastilho, faltando apenas que um descuido ou uma acção premeditada de um dos lados lhe chegue a chama, que pode transformar-se na chama do fim do mundo tal como existe hoje.
E essa chama pode muito bem ser a perigosa e desafiante visita de Nancy Pelosi, embora sem data marcada, mas com calendário apertado, a Taipé, a capital de Taiwan, o que Pequim vê como uma intromissão inaceitável nos seus assuntos internos e, segundo analistas, pode ser uma razão para que o Governo do Partido Comunista da China (PCC) dê início à aguardada e prometida, desde os idos de 1950, retoma do controlo político sobre a ilha independentista, o que seria uma catástrofe regional e, provavelmente, global, com efeitos devastadores da economia e na segurança planetária.
A ilha de Taiwan iniciou um processo de afastamento independentista da China continental em 1949, quando Chiang Kai-shek, o líder rebelde que se opunha ao avanço comunista de Mao Tse Tung, por este escorraçado, se refugiu no território, impondo pela lei da força a sua política secessionista, liderando o Kuomintang e a ilha até 1975, ano da sua morte, sem que Pequim baixasse os braços alguma vez sobre a sua intenção de, mais cedo ou mais tarde, retomar esta parcela para o seu controlo integral.
Com um apoio claro e inequívoco dos Estados Unidos, especialmente militar, armando as suas forças com tudo o que o seu mais sofisticado arsenal dispõe, excepto armas nucleares, embora Washington respeite formalmente a existência de uma única China.
E esta situação de "impasse formal" que foi garante de paz desde o fim da II Guerra Mundial, pode estar à beira de implodir porque se Pelosi se deslocar mesmo a Taipé, isso é um golpe, na visão de Pequim, insustentável na sua soberania, o que, de facto, fica claro com a garantia dada já pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês de que se tal ocorrer, a resposta será inequívoca e clara, uma ameaça evidente mas sem pormenores, o que deixa tudo emaberto, incluindo uma acção militar.
E é por causa desse leque de opções em cima da mesa do Presidente chinês, Xi Jinping, que não pode perder a face nesta disputa quando está em pleno processo de recondução no cargo e tem, dentro do PCC, conhecida oposição que pode aproveitar um momento de fraqueza para jogar o seu trunfo nacionalista, que o Pentagono, a chefia militar norte-americana, já veio a público, num primeiro momento, através de fontes anónimas, dizer que o momento não é o mais indicado para esta visita, e, num segundo momento, garantir que, desta feita oficialmente, tudo será feito para garantir a segurança daquela que é uma das principais figuras de Estado nos EUA e uma das caras da mais vincada facção anti-China na nomenclatura norte-americana.
Este momento não é apenas único por causa da visita, é-o especialmente pelo momento melindroso que o mundo vive com a guerra na Ucrânia, com os EUA nela envolvidos fortemente e com o eixo Pequim-Moscovo a dar mostras de não deslaçar, sendo que muitos analistas perspectivam que os Estados Unidos estão a apoiar Kiev com o objectivo de enfraquecer a Rússia para que este país fique sem condições de se posicionar militarmente ao lado da China em caso de conflito armado com os EUA no Mar do Sul da China.
AUKUS, a confirmação...
A tese de que os EUA visam, no futuro, apontar as suas baterias à China, de forma a garantir que o mundo permanece apenas com uma superpotência com influência suficiente para desenhar a ordem mundial à sua semelhança e interesses, defendendo, por exemplo, o edifício Dólar e as regras financeiras ocidentais que o servem, é suportada pela criação recente do AUKUS, sigla que junta as iniciais, em inglês, de Austrália/Reino Unido/EUA, na região do Indo-Pacífico, com o objectivo de travar o avanço da China nesta vasta região do mundo, a ponto de Washington fornecer submarinos nucleares a Camberra.
A China é, claramente, o "inimigo a abater" por parte da estrutura dirigente norte-americana, que está no limite, como notam vários analistas, do que pode aceitar face ao crescimento chinês das duas últimas décadas, sejam económico, seja na sua extensão geopolítica, onde Pequim, por exemplo, expulsou claramente todas as outras potências em África e ganhou influência substancial na América Latina, que os EUA em tempos de guerra fria consideravam o seu "quintal das traseiras".
Como o Novo Jornal noticiou, Xi Jinping apressou-se a chamar à atenção o Presidente americano, aconselhando Biden a não importunar o formigueiro quando as formigas estão sossegadas, e disse mesmo ao seu homólogo que a criação do AUKUS "é brincar com o fogo". A ONU também sentiu o toque.
Numa conversa entre ambos ocorrida em finais de 2021, pouco depois de anunciada a criação desta nova "NATO do Indo-Pacífico", o AUKUS, Biden e Jinping concordaram que a situação era especialmente complexa e foi aventada a hipótese de criar um mecanismo de comunicação que impeça no futuro que qualquer equívoco leve a uma reacção militar perigosa para a humanidade, tendo o Presidente chinês defendido que a melhor forma de isso não acontecer é que as duas potências colaborem em vez de se desafiarem mutuamente.
Para já, isso está posto em risco, porque, como noticia a Associated Press, recorrendo a fontes anónimas, o Pentagono está a ponderar o envio de forças militares para a região de forma a garantir a segurança de Nancy Pelosi se esta se deslocar a Taiwan, enquanto analistas chineses, ligados ao regime de Pequim, colocam em cima da mesa a possibilidade de aviões de guerra sobrevoarem a ilha pela primeira vez desde 1950, o que seria quase de certeza motivo para confrontos entre os dois lados, com os EUA no meio.
A agência de notícias norte-americana avança ainda que as chefias militares no Pentagono não admitem que a China possa agir militarmente contra Pelosi intencionalmente mas notam que será difícil que não ocorra uma demonstração de forma aérea, com aviões dos três, Taiwan, China e EUA no ar, colocando como cenário limite uma colisão com consequências imprevisíveis, sendo ainda hipótese que Pequim declare Taiwan como "zona de exclusão aérea".
Para já, segundo ainda a AP, os EUA estão na iminência de enviar uma das suas esquadras de porta-aviões para a zona do Mar do Sul da China, de forma a garantir a segurança de Pelosi, o que levará a China a deslocar forças em proporção.
Nancy Pelosi, de 82 anos, que dirige há vários anos a Câmara dos Representantes pelo Partido Democrático, de Joe Biden, está neste momento com os holofotes dos media em todo o mundo em cima.
E pode mesmo ser a sua última jogada de grande impacto antes de uma eventual retirada da política activa. Mas, para trás, pode deixar uma bola de neve a deslizar já montanha abaixo...