Depois de uns dias sem se saber como iriam os guerrilheiros do Movimento 23 de Março (M23) reagir ao acordo assinado, no dia 23, em Luanda, nas últimas 48 horas começaram a surgir indícios de que algo de importante pode ter mudado, porque se deixou de ouvir os ecos da guerra vindos da linha da frente que separa os rebeldes e as FARDC (Forças Armadas República Democrática do Congo), o que pode ser um sinal de que o cessar-fogo exigido pelo acordo da capital angolana está a ser conseguido.
O documento assinado em Luanda é um guião para a paz no leste congolês e foi assinado na Cimeira regional envolvendo Vincent Biruta, MNE, a representar Paul Kagame,Presidente do Ruanda, o Presidente da RDC, Félix Tshisekedi, com o músculo e a influência dos dois líderes sub-regionais, João Lourenço pela Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL), e Évariste Ndayishimiye, Presidente du Burundi e da Comunidade de Países da África Oriental (EAC, sigla em inglês).
Recorde-se que logo após a assinatura do compromisso de Luanda, os lideres do M23 vieram dizer sem rodeios que não iriam dar seguimento a um acordo para o qual não foram chamados, o que fez levantar as antenas da comunidade internacional que tinha na iniciativa do Presidente angolano uma derradeira oportunidade para a paz, fortalecida que tinha sido pouco antes com a indicação de Paul Kagame de que iria usar a sua influência para travar o passo aos homens do M23, que o Governo da RDC diz não ter duvidas que conta com o apoio directo de Kigali e, por isso, o que importa é mesmo levar o Governo ruandês a decidir, apesar deste negar sempre que seja a mão por detrás do arbusto.
Para já, como relata a AFP, no Domingo, pelo segundo dia consecutivo, não se ouviram os ecos da guerra na linha da frente entre os rebeldes e as FARDC, o que permite admitir como forte possibilidade que os apelos a um cessar-fogo estavam a ser seguidos. Recorde-se que o documento de Luanda impunha como limitepara o calar das armas as 18:00 de sexta-feira, 25.
Se se confirmar este cessar-fogo, pode ser fulcral para a RDC, considerando que as autoridades policiais de Goma, a capital do Kivu Norte, onde os confrontos estavam a ser mais acesos, chegaram a admitir que a cidade estava prestes a ser tomada pelos rebeldes, sendo, todavia, facto que os homens do M23 estão dominam um vasto território congolês nas proximidades da fronteira com o Ruanda.
O cenário onde este conflito se desenrola tem tudo para ser um barril de pólvora, porque nele se misturam problemas étnicos relevantes, desde logo porque as diferentes guerrilhas são, no conjunto, fruto directo ou indirecto, do genocídio de 1994, no Ruanda, onde a maioria Huto massacrou mais de 800 mil pessoas da minoria Tutsi, tendo o leste da RDC, especialmente as províncias de Kivu Norte, Kivu Sul e Ituri, servido de refugio para largas dezenas de milhares de pessoas, um vazio do Estado congolês totalmente inadequado quando se trata de uma região onde abundam recursos naturais de enorme valor estratégico, como o ouro, diamantes, coltão ou cobalto...
Com a sua localização estratégica em pleno coração do continente, com a importância do conjunto sub-regional e regional, onde se destacam, além da RDC e do Ruanda, países como o Uganda, o Burundi, a Tanzânia, o Quénia, a República Centro-Africana ou o Sudão e o Sudão do Sul, além de Angola e da República do Congo ou a Zâmbia, o mundo não tira os olhos do que ali se passa e o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, tem mantido contacto permanente com os lideres locais, alé de os EUA e a Rússia e a China não esconderem esforços para garantir que têm uma palavra a dizer naquilo que vier a ser a solução, a existir, para este complexo xadrez de violência e interesses estratégicos.
O cenário alargado
O problema em pano de fundo é que o Governo do Presidente Tshisekedi acredita que este grupo, o M23, que foi criado em 2012 e esteve adormecido até meados de 2021, está a actuar com a cobertura ruandesa e acusa o Governo de Paul Kagame de lhes dar apoio logístico e permitir o uso do seu território para refúgio.
Há meses que que os dois países trocam severas acusações de trespasse das linhas de fronteira, gerando ocasionais escaramuças entre os dois exércitos, mas é na actuação do M23 que o problema se agudiza, com Kinshasa a acusar Kigali de estar por detrás do renascimento deste grupo terrorista para gerar instabilidade no leste da RDC.
Este conflito, que, segundo relatos das agências e dos media com jornalistas no terreno, já provocou centenas de mortos e largos milhares de deslocados, está a colocar em risco a soberania congolesa no Kivu Norte e a capital desta importante província congolesa, devido a sua riqueza em recursos naturais, Goma, pode mesmo ser tomada pelas forças do M23 em pouco tempo.
Para evitar uma guerra aberta entre a RDC e o Ruanda, e num contexto em que a sociedade civil congolesa está mergulhada em apelos radicais de acção militar contra o Ruanda, através de manifestações que envolvem centenas de milhares de jovens em várias cidades e regiões, visto como a força de onde saiu o M23 para mergulhar o leste do país no caos, a organização sub-regional, EAC, criou uma força militar de interposição.
Para já, esta força militar, com enquadramento legal para apoiar as Forças Armadas da RDC (FARDC) nas suas acções de combate ao M23, é composta por militares do Burundi, do Quénia e do Uganda, devendo contar com mais de 2.500 elementos nos próximos dias, havendo possibilidade de alargar este contingente a outros países.
E no campo diplomático, estão no terreno dois mediadores reconhecidos pela União Africana, o antigo Presidente do Quénia, Uhuru Kenyatta, em nome da EAC, e o Presidente angolano, João Lourenço, como líder da CIRGL e ainda na condição de Campeão para a Reconciliação e Paz em África.
Para que o documento assinado na Cimeira de Luanda tenha sucesso, foi importante, segundo alguns analistas, a admissão por parte do Presidente ruandês, mesmo que tenha primado pela ausência desta vez, de que irá exercer a sua influência junto do M23 para acabar com a sua acção violenta no Kivu Norte.
A questão em cima da mesa a responder é, primeiro, o que opõe de facto os dois países, e como ultrapassar os diferendos, porque, para lá da deposição das armas e da saída das zonas ocupadas, há em pano de fundo outras questões para ultrapassar
A primeira parte da questão é simples: a RDC acusa o Ruanda de apoiar o M23 na sua tarefa de desestabilizar o leste do país; e o Ruanda acusa a RDC de apoiar os guerrilheiros da Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) nas suas acções em território ruandês, como Kigali diz acontecer amiúde, sendo ainda conhecido que o M23 acusa KInshasa de estar a desrespeitar o acordo assinado em 2013, que garantia a integração social dos elementos do grupo que depusessem as armas.
2ª parte da questão: Responder às razões de fundo para este conflito
O leste do Congo é uma das regiões mais ricas do mundo em recursos naturais estratégicos, desde logo o coltão e o cobalto, dois minerais incontornáveis para as novas industrias tecnológicas e aeronáutica de ponta, sem as quais toda a parafernália tecnológica de comunicações, como os simples smartphones, não existiria tal como a conhecemos, sem o coltão, e a indústria que exige a aplicação de baterias, como a dos automóveis eléctricos, seria algo muito distinto do que é hoje sem acesso ao cobalto, sendo ainda abundantes as denominadas terras raras, com igual uso nas novas tecnologias, o ouro ou os diamantes.
E a piorar o cenário, como combustível para esta fogueira, a RDC possui as maiores reservas do mundo de coltão e cobalto, mais de 80% de um e de outro, quase em exclusivo presentes no leste do país, sendo esta geografia geradora de grandes "apetites" pelas multinacionais do sector, que, segundo ONG"s internacionais de defesa dos Direitos Humanos, usam as guerrilhas para explorar sem controlo estas jazidas, afastar populações ou aterrorizar as forças do Estado que procuram chegar a estas "terras de ninguém" assoladas pela mais hedionda violência.
Mas também os vizinhos, como o Ruanda, desde sempre exploram estas riquezas de forma encapotada, porque, como chegou a ser denunciado publicamente por organizações internacionais, não existem depósitos de coltão no país mas este aparece como um dos grandes exportadores mundiais deste minério estratégico.
A par da questão dos recursos naturais congoleses nos Kivu Norte e Sul, existem ainda questões de natureza territorial com potencial incendiário na região, desde logo por razões étnicas, ou de sobrepopulação, sendo o Ruanda o que apresenta a maior densidade populacional na África continental, sendo apenas ultrapassado pelas Maurícias e Mayotte, pequenas ilhas francesas situadas entre Madagáscar e Moçambique, no Índico.
Este cenário conduz, desde logo, a uma situação em que o Ruanda, um país pequeno, sobrepovoado - mais de 400 pessoas por km2 -, mas um dos mais ricos e desenvolvidos em África do ponto de vista organizacional e económico, se vê fortemente tentado, segundo alguns analistas, a alargar a sua territorialidade para oeste, onde o leste congolês é hoje uma espécie de terra de ninguém, com fraca presença do Estado e dominado por guerrilhas e interesses obscuros ligados às suas riquezas naturais.
É de ter ainda em consideração que o Ruanda foi palco, em 1994, de um trágico episódio, conhecido como o genocídio ruandês, em que mais de 800 mil tutsis, a minoria étnica, foram massacrados com extrema violência, pela maioria Huto.
Este episódio histórico trágico levou a que largas centenas de milhares de ruandeses procurassem segurança na vizinha RDC, onde surgiram, nesse momento, algumas das guerrilhas mais activas, como a Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) que vingou até hoje no leste congolês, sendo, juntamente com a ADF ugandesa, de génese islâmica, actualmente sob domínio do estado islâmico, e o M23, as mais sanguinárias.
Ver links em baixo nesta página para revisitar a cobertura do Novo Jornal à persistente crise no leste da RDC