Há mais de um ano que as províncias do leste da RDC, Kivu Norte, especialmente, mas também o Kivu Sul e Ituri, vivem um recrudescer a actividade guerrilheira, com destaque para a avalanche de violência gerada pelo M23, um grupo com origem no Ruanda, criado em 2012, que esteve adormecido até meados do ano passado.
Com a reactivação do M23, a violência, que já era vigorosa no leste congolês, palco da actividade de vários grupos de milícias e guerrilhas com origem nos países vizinhos, como os ugandeses da ADF ou os ruandeses da FDLR, ganhou uma dimensão sanguinária, com centenas de mortos, milhares de desalojados e esporádicos confrontos entre os Exércitos do Ruanda e da RDC, porque Kinshasa acusa desde o primeiro minuto KIgali de estar por detrás do ressurgimento desta organização de guerrilha terrorista.
Com uma vaga crescente de sinais claros de que estava iminente uma guerra aberta entre a RDC e o Ruanda, que trocaram várias acusações sobre quem deu início às hostilidades, vários actores internacionais entraram em cena logo em meados de 2021 para evitar a faísca que pode incendiar um barril de pólvora, como é a Região dos Grandes Lagos.
E um desses protagonistas foi o Presidente angolano, na qualidade de líder da Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL) e, também, na condição de "Campeão para a paz e reconciliação em África", uma "patente" atribuída pela União Africa, organização pela qual é ainda mediador neste processo, à qual João Lourenço tem procurado corresponder liderando uma parte das tentativas de acalmar os ânimos na região.
Isso mesmo ficou evidente com as recentes Cimeiras que trouxeram a Luanda os Presidentes congolês, Félix Tshisekedi, e ruandês, Paul Kagame, ou os seus ministros dos Negócios Estrangeiros, o que permitiu impedir que, pelo menos, o rastilho que leva a chama ao paiol da pólvora arda com menor intensidade e mais lentamente.
E para hoje, segunda-feira, 21, estava prevista uma nova ronda em Luanda com Kagame e Tshisekei, à qual se juntaria o Presidente do Burundi, Évariste Ndayishimiye, e ainda o queniano Uhuru Kenyatta, na condição de mediador da EAC, mas o encontro, depois de ter sido adiado para quinta-feira, foi esta segunda-feira agendado para quarta-feira pela Presidência.
A organização do leste africano já tinha anunciado anteriormente uma nova ronda negocial com as partes, RDC e M23 - recorde-se que o Ruanda não aceita qualquer acusação de estar a apoiar estes guerrilheiros - na capital queniana, Nairobi.
Passo de gigante?
Para acabar com esta tensão crescente e perigosa nos Grandes Lagos, há uma certeza que os analistas congoleses têm, e para a perceber basta ler a imprensa da RDC por estes dias, que é a convicção de que o M23 não pode ter saído de um longo adormecimento - de anos - sem o apoio de uma força poderosa externa, e o dedo foi imediatamente apontado ao Ruanda, país de origem do grupo, e que é essencial cortar esse apoio de retaguarda.
Com o Governo de Félix Tshisekedi a acusar, há meses, o Ruanda de estar a apoiar o M23, com momentos de forte tensão, nomeadamente quando em Julho Kinshasa fechou o seu espaço aéreo à RwandAir, a companhia nacional ruandesa de aviação, e escaramuças de fronteira violentas, mas esporádicas, entre os dois Exércitos, e com Paul Kagame e o seu Governo a recusar quaisquer responsabilidades e apoio aos guerrilheiros, este contexto tinha, e tem, tudo para resvalar para um conflito aberto entre os dois vizinhos.
No entanto, ao fim de longos meses de dissuasão diplomática e pressão política, o líder ruandês, Paul Kagame, comprometeu-se com o mediador da EAC, Uhuru Kenyatta, a pressionar o M23 a parar com as agressões, tendo, na sexta-feira, o antigo Presidente queniano, na qualidade de mediador dos países do leste africano para o Processo de Paz de Nairobi para a RDC, garantido que tal pode ser o princípio para chegar a um fim sólido para esta crise.
Esta declaração inesperada, até porque Kagame admite perante o mediador queniano, que tem, afinal, capacidade de influenciar o M23,foi divulgada em comunicado, depois de Kenyatta ter estado em Kigali e em Kinshasa para reduzir a tensão e abrir caminho a um regresso às negociações, desde logo em Nairobi, mas também em Launda, até porque tanto a CIRGL como a EAC têm feito questão de admitir que ambos os processos e esforços são complementares e não antagónicos, para levar a paz ao leste congolês.
Em cima da mesa pode estar um sólido cessar-fogo, com alguns analistas a avançarem a hipótese salvífica de que Luanda pode ser esta semana, na quinta-feira, o palco da assinatura de um documento mais abrangente que os demais até aqui assinados, que tinham como objectivo cimentar os caminhos para a paz, o que só seria possível se Paul Kagame admitir, como, de resto, parece já ter feito, que pode controlar o Movimento 23 de Março.
Para que tal seja possível, as negociações que decorrem esta quinta-feira, 21, em Nairobi, têm de lavrar o terreno onde frutificará a paz a partir das sementes lançadas nesta vasta região que vai de Luanda a Nairobi, de Kinshasa a Kigali, e a capital angolana pode bem vir a ser já o local da colheita.
Esse acordo assinado é essencial porque no terreno parece ser cada vez mais difícil impor uma acalmia através de uma força de interposição, considerando que as acções violentas do M23 prosseguem apesar das centenas de militares enviados já para a zona pelo Quénia e pelo Burundi.
O sucesso do diálogo quadripartido - Luanda/Nairobi/Kigali/Kinshasa - só poderá ser solidificado se o M23 abandonar sem condições os territórios que nos últimos meses passou a controlar, especialmente nas áreas de Goma, a capital da província do Kivu Norte, entre outras, especialmente nas áreas próximas à fronteira do Ruanda, permitindo o regresso dos milhares de civis que foram obrigados a fugir para salvar as suas vidas, engrossando o já vasto número de refugiados no leste congolês, mais de 3 milhões, segundo algumas ONG"s.
Este processo de pacificação é considerado como urgente por todas as partes, até porque na RDC cresce na sociedade uma vaga de fundo que exige uma acção robusta das Forças Armadas do país (FARDC) contra o Ruanda, porque a recusa de aceitar as acusações de que está a apoiar o M23 não convence, e o risco cresce a cada dia que passa sem ser anunciada uma solução.
A faísca congolesa
É um facto que está a crescer na sociedade congolesa uma exigência cada vez maior de ajuste de contas com o Ruanda, o que pode ser percebido de forma clara olhando para os milhares de jovens congoleses que responderam ao apelo patriótico do Presidente da RDC, Félix Tshisekedi, feito no dia 05 de Novembro, para que se juntem às forças de segurança no combate armado aos guerrilheiros do M23.
Para o Governo do Presidente Félix Tshisekedi não há grandes dúvidas de que o Ruanda está por detrás do apoio logístico e financeiro dos guerrilheiros do Movimento 23 de Março que voltaram a atormentar o leste da RDC nos últimos meses.
Depois de acusações graves trocadas entre Kinshasa e Kigali desde meados de 2021, embora este seja um conflito de baixa intensidade que se prolonga desde a década de 1990, sobre violações territoriais de uma e outra parte - o Ruanda tem fronteira com a RDC nas províncias do Kivu Norte e Kivu Sul - e da ocorrência de escaramuças fronteiriças ocasionais entre militares dos dois países, o surgimento do M23, um grupo de guerrilha que estava adormecido desde há quase uma década, levou o Governo congolês a agir acusando o Governo ruandês de estar por detrás da sua acção violenta no leste do país.
Esta mobilização geral, com manifestações de apoio em todas as grandes cidades da RDC, onde largos milhares de congoleses exigem acção ao Governo de Kinshasa directamente contra o Ruanda, que consideram o verdadeiro agressor, fazendo dos guerrilheiros do M23 a ferramenta da agressão, é uma escalada séria nesta disputa de argumentos entre Kinshasa e Kigali que pode, mais cedo ou mais tarde, empurrar os Grandes Lagos para a condição de palco de um conflito aberto que pode ter consequências devastadoras para toda a África Central.
Isto, porque dificilmente os países vizinhos, desde logo o Uganda, o Burundi, o Quénia, a RCA ou o Sudão, ou mesmo Angola, no sul, embora mais distante, poderão deixar de agir face a um eventual conflito declarado devido aos interesses geoestratégicos em causa e as afinidades geográficas, étnicas e culturais de um dos mais perigosos lugares no Planeta Terra pelo seu potencial desestabilizador.
As imagens transmitidas pelas cadeias de televisão internacionais não enganam. São às dezenas de milhar os jovens congoleses que se mobilizam para as fileiras das forças militarizadas da RDC, mostrando-se em formações de combate e com grande disponibilidade para o que for considerado necessário pelos lideres em Kinshasa, com um volume crescente de mobilizados desde que foi feito o apelo nesse sentido por Félix Tshisekedi.
Esse apelo, recorde-se, foi feito claramente com o sentido de "mobilizar os congoleses contra a agressão" do Ruanda através do M23, estando os primeiros voluntários já a chegar à região para integrar as fileiras das FARDC no leste do Congo.
As razões de fundo para este conflito
O leste do Congo é uma das regiões mais ricas do mundo em recursos naturais estratégicos, desde logo o coltão e o cobalto, dois minerais incontornáveis para as novas industrias tecnológicas e aeronáutica de ponta, sem as quais toda a parafernália tecnológica de comunicações, como os simples smartphones, não existiria tal como a conhecemos, sem o coltão, e a indústria que exige a aplicação de baterias, como a dos automóveis eléctricos, seria algo muito distinto do que é hoje sem acesso ao cobalto, sendo ainda abundantes as denominadas terras raras, com igual uso nas novas tecnologias, o ouro ou os diamantes.
E a piorar o cenário, como combustível para esta fogueira, a RDC possui as maiores reservas do mundo de coltão e cobalto, mais de 80% de um e de outro, quase em exclusivo presentes no leste do país, sendo esta geografia geradora de grandes "apetites" pelas multinacionais do sector, que, segundo ONG"s internacionais de defesa dos Direitos Humanos, usam as guerrilhas para explorar sem controlo estas jazidas, afastar populações ou aterrorizar as forças do Estado que procuram chegar a estas "terras de ninguém" assoladas pela mais hedionda violência.
Mas também os vizinhos, como o Ruanda, desde sempre exploram estas riquezas de forma encapotada, porque, como chegou a ser denunciado publicamente por organizações internacionais, não existem depósitos de coltão no país mas este aparece como um dos grandes exportadores mundiais deste minério estratégico.
A par da questão dos recursos naturais congoleses nos Kivu Norte e Sul, existem ainda questões de natureza territorial com potencial incendiário na região, desde logo por razões étnicas, ou de sobrepopulação, sendo o Ruanda o que apresenta a maior densidade populacional na África continental, sendo apenas ultrapassado pelas Maurícias e Mayotte, pequenas ilhas francesas situadas entre Madagáscar e Moçambique, no Índico.
Este cenário conduz, desde logo, a uma situação em que o Ruanda, um país pequeno, hiperpovoado - mais de 400 pessoas por km2 -, mas um dos mais ricos e desenvolvidos em África do ponto de vista organizacional e económico, se vê fortemente tentado, segundo alguns analistas, a alargar a sua territorialidade para oeste, onde o leste congolês é hoje uma espécie de terra de ninguém, com fraca presença do Estado e dominado por guerrilhas e interesses obscuros ligados às suas riquezas naturais.
É de ter ainda em consideração que o Ruanda foi palco, em 1994, de um trágico episódio, conhecido como o genocídio ruandês, em que mais de 800 mil tutsis, a minoria étnica, foram massacrados com extrema violência, pela maioria Huto.
Este episódio histórico trágico levou a que largas centenas de milhares de ruandeses procurassem segurança na vizinha RDC, onde surgiram, nesse momento, algumas das guerrilhas mais activas, como a Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) que vingou até hoje no leste congolês, sendo, juntamente com a ADF ugandesa, de génese islâmica, actualmente sob domínio do estado islâmico, e o M23, as mais sanguinárias.
Ver links em baixo nesta página para revisitar a cobertura do Novo Jornal à persistente crise no leste da RDC