Para já, e antes de Putin e Zelensky se sentarem à mesma mesa, a "linha da frente" diplomática que procura uma solução para esta guerra na Ucrânia, que já vai no 23º dia contado a partir de 24 de Fevereiro, quando as forças russas avançaram sobre o território da Ucrânia, está demarcada entre Pequim e Washington por uma linha telefónica onde, de um lado, estará o Presidente dos EUA, Joe Biden, e, do outro, o líder chinês, Xi Jinping, com o conflito no leste europeu como tema único da conversa entre as duas maiores potências económicas globais e claramente entre as maiores no patamar militar.

Esta conversa não tem segredos porque ambos os lados já disseram, em público e nos termos mais claros e inequívocos, o que os move.

Se a China optou por uma neutralidade comprometida com a continuidade dos negócios com a Rússia, e com a Ucrânia, recusando entrar no pacote de sanções aplicado a Moscovo pelos países e organizações ocidentais, por os considerar ineficazes e sem suporte legal internacional, os Estados Unidos tomaram o lado da Ucrânia sem titubear a, além de liderarem a formulação da mais violenta lista de sanções alguma vez dirigida a um país, ameaçaram claramente Pequim de que irá sofrer severas consequências se abrir os seus cofres para apoiar financeiramente o esforço de guerra russo e alimentar a sua máquina militar com equipamento bélico.

Biden tratou, ainda antes deste encontro, de soprar no braseiro ucraniano, primeiro, anunciando um pacote gigante de apoio a Kiev, mais de 14 mil milhões USD, incluindo militar e humanitário, e, em segundo, chamando "criminoso de guerra" e "bandido" ao Presidente russo.

Estas provocações obtiveram de Dmytri Peskov, o porta-voz do Kremlin, uma resposta "normal" nestas circunstâncias, primeiro dizendo ser "uma formulação inadequada" entre Chefes de Estado, e, depois, através dos media russos, no sputniknews.com, divulgando um vídeo com perto de 30 anos onde o agora inquilino da Casa Branca se mostra a apoiar, de forma inequívoca, o bombardeamento arrasador da então capital da Jugoslávia, Belgrado, na histórica guerra dos Balcãs, onde a NATO interveio de forma massiva contra a Sérvia.

Pouco mais tarde, citado pela Reuters, Peskov disse que BIden anda "cansado e com falta de memória" mostrando ainda sinais de "irritabilidade" que não deveriam existir no Presidente dos EUA, salvaguardando que se trataram de "insultos pessoais" e que, por isso, não iria ouvir mais nada do Kremlin para não meter mais gasolina no fogo.

A China vai ser paciente porque corre por fora

Desta fornalha diplomática ressalta ainda o pragmatismo chinês, que ficou demonstrado, mais uma vez, já esta semana, em Roma, Itália, onde, durante sete incandescentes horas, o conselheiro nacional para a segurança de Biden, Jake Sullivan, e o diplomata chinês, Yang Jiechi, discutiram o assunto da guerra no leste europeu, onde o norte-americano deixou, segundo fontes citadas pelas agências, um sério aviso à China das "severas consequências" de um envolvimento mais próximo com a Rússia neste conflito.

Isto, quando se sabe que a China e a Rússia assinaram vários acordos antes deste conflito, incidindo em vários domínios da economia e do comércio, mas não são conhecidos quaisquer entendimentos no âmbito da cooperação militar firmados recentemente.

A parte chinesa repetiu o que tem vindo a ser sublinhado pelo seu Ministério dos Negócios Estrangeiros, que é a continuidade das relações de cooperação comercial com a Rússia, cumprindo os acordos assinados entre ambos os países, recusando o alinhamento na estratégia das sanções ocidentais mas reforçando a neutralidade demonstrada na abstenção votada na Assembleia-Geral da ONU onde os EUA e a Albânia apresentaram um projecto de resolução de condenação pesada da invasão russa à Ucrânia.

Para a conversa de hoje, alguns analistas admitem que a estratégia de Joe Biden passa por garantir, através de um compromisso com XI Jinping, que a China se mantém de fora da disputa russo-ucraniana, não apoiando, nem financeira nem militarmente Moscovo, de forma a que o esforço de guerra acabe por exaurir as possibilidades belicistas de Moscovo, acabando Putin por soçobrar e, preferencialmente, acabando com as pretensões da Rússia de voltar ao palco das grandes potências mundiais, ao mesmo tempo que Washington aumenta, dia após dia, o apoio de largo espectro a Kiev, tal como a União Europeia.

Com o apoio militar dos EUA e dos restantes países da NATO à Ucrânia, nomeadamente em sistemas de defesa antiaérea, antitanque e logística militar, esta guerra, se não houver um avanço decisivo no campo diplomático, pode prolongar-se sem prazo, o que seria uma catástrofe não só humanitária no campo de batalha, mas também em número de refugiados que já vão em mais de 3,2 milhões, e, com especial enfoque, na crescente crise económica global com o aumento pujante dos combustíveis e dos alimentos em todo o mundo.

Para a China, as exigências dos EUA podem ser vistas como um desafio inaceitável visto não terem uma contrapartida equitativa, e ainda porque Pequim tem bem presente que se a Rússia acabar por cair do seu pedestal de grande potência neste conflito regional, ficará sozinha na vastidão planetária contra um ocidente cada vez mais belicista - o investimento dos países da NATO está a subir de forma substancial nos últimos anos e ainda mais agora -, perdendo "profundidade de campo" no seu problema "interno" que é Taiwan, e que se sabe ser uma questão de "quando" será tratado, provavelmente de forma militar, e não "se" isso vai suceder.

Como é que uma e outra parte se vão desenvencilhar do "nó górdio" com que se estão a deparar, só depois desta conversa entre Xi Jinping e Joe Biden se poderá ler nas entrelinhas do que vier a ser revelado oficialmente, mas dificilmente a China deixará pelo caminho o seu macroplano de evoluir para a potência económica mundial nº1, para o qual pode ser essencial uma Rússia - e uma Índia, que também não abdicou da sua estratégia neutral mas sem melindrar Moscovo - importante no xadrez mundial.

Todavia, os analistas coincidem num ponto sem grandes divergências: Se a China tem todo o interesse em terminar esta guerra em breve, porque já assegurou da Rússia uma posição vantajosa no campo comercial para o futuro, e porque isso vai permitir ao gigante asiático voltar o negócio do costume, continuando o seu plano para se tornar na maior economia mundial numa década, enquanto prepara o terreno para resolver o imbróglio de Taiwan, para os EUA é importante estender a guerra na Ucrânia até ao ponto em que a Rússia soçobre e perca o vigor próprio das grandes potências, até porque as consequências nefastas do conflito, como a avalanche de refugiados e os custos humanitários deverão ser amortecidos substancial e maioritariamente pela União Europeia.

Contexto

A 24 de Fevereiro, depois de semanas de impaciente expectativa, as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de KIev da soberania russa da Península da Crimeia, integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1992, com o colapso da União Soviética.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, em mais de 60%.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios...

Milhares de mortos e feridos e mais de 3 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página, inclusive as suas consequências económicas, como o impacto no negócio global do petróleo.