Os países do G7, organização que junta os sete países mais industrializados do mundo, e a União Europeia, estiveram na linha da frente da estratégia ocidental para sancionar as exportações petrolíferas da Rússia, por causa da invasão da Ucrânia, procurando infligir "danos pesados" à principal fonte de rendimento com que a Federação Russa alimenta o seu esforço de guerra.

Porém, como alguns analistas têm sublinhado, a aparentemente sólida frente aliada da Ucrânia, e ruidosa defensora de sanções à Rússia, afinal, colapsa facilmente face às primeiras dificuldades, esfumando-se a coerência e a vontade, primeiro com a proibição das importações dos cereais pela Polónia, Bulgária, Eslováquia e, em breve, a Roménia, e, agora, com a generalidade dos países ocidentais, a contornarem as sanções ao petróleo russo, indo comprá-lo na forma de produtos refinados aos países, como Índia e China, que têm estado a importar em grandes quantidades o crude Made in Russia.

A denúncia surge agora num relatório do CREA (Centro de Pesquisa para a Energia e Ar Limpo), uma reconhecida organização internacional de defesa do ambiente, com sede na Finlândia, que revela, embora já fossem conhecidos casos, como os EUA, que depois de banirem as importações russas, contornaram essa decisão de forma escondida ao irem aos mercados indiano, turco ou chinês comprar o crude russo já refinado em combustíveis e lubrificantes.

O CREA diz claramente que os países ocidentais, do G7 - EUA, Japão, Reino Unido, Alemanha, França, Itália e Canadá - e da União Europeia, estão a contornar conscientemente as sanções ao petróleo russo, nomeadamente o preço limite de 60 USD por barril, e um preço máximo de 100 USD por barril em produtos refinados.

Com a coligação do preço limite (price cap) em ruínas devido aos transtornos económicos que a medida está a causar às suas economias superdependentes de crude russo, e de forma a não mostrar à Ucrânia que estão a ignorar essas mesmas sanções solidárias com o seu esforço de guerra contra Moscovo, os países ocidentais, que se multiplicam em pedidos e pressões sobre o resto do mundo para se juntar à muralha anti-russa, estão, afinal, a passar por cima das suas próprias iniciativas.

E isso está a ser feito de uma forma que é, no mínimo, incoerente, porque a Rússia, face ao muro de sanções ocidentais, optando por não enviar petróleo para os países que aderiram ao "preço limite" de 60 USD, está há meses a vender a sua produção quase na totalidade a preços com desconto para a Ásia, desde logo a China e a Índia, que, além de grandes consumidores, a China é o 2º e a Índia o 3º, no mundo, têm uma gigantesca robusta indústria de refinação, que estão a usar, segundo o CREA, para ganhar milhões ao comprar a matéria-prima barata a Moscovo, refiná-la e a vender a preços de mercado às economias ocidentais... aliadas de Kiev.

Este centro vai ao detalhe de explicar que os países do G7, UE e a Austrália compraram quase 46 mil milhões USD de produtos refinados diversos aos países que mais têm importado crude russo ao longo destes quase 14 meses de guerra.

A liderar esta frente de compradores de petróleo russo pela porta das traseiras está, segundo o CREA, que chega a estes números através da verificação da listagem das cargas marítimas enviadas, a União Europeia (UE), com mais de 19 mil milhões apenas em pouco mais de mês e meio, a Austrália, quase 9 mil milhões, embora este valor seja referente a 12 meses, os EUA passam dos 7 mil milhões, o Reino Unido 5,5 mil milhões de dólares e o Japão pouco mais de 5 mil milhões.

Estas compras são, na sua maior parte, referentes a diesel e a combustível de avião, sendo que a China, aproveitando a compra em saldos do crude russo, está a aumentar mês após mês as exportações de produtos refinados para a União Europeia, o que, por um lado, expõe a hipocrisia de Bruxelas, e, por outro, arrecada fortunas diariamente devido às sanções ocidentais que, afinal, são apenas, pelo menos em parte, faz de conta.

Os dados recolhidos pelo CREA dizem que a China, com 94%, foi o país que mais aumentou as vendas de refinados derivados, na maior parte, de ramas russas, aos países ocidentais, seguindo-se a Turquia (43%), Singapura (33%), os Emirados Árabes Unidos (23%) e a Índia (2%).

Este relato, seja a questão dos cereais ucranianos que deixaram de poder entrar nos mercados polaco, búlgaro, húngaro e, crê-se, em breve no romeno, curiosamente, excepto a Hungria, os mais aguerridos apoiantes da Ucrânia, com destaque para a Polónia, seja do contorno pouco discreto às sanções ocidentais que o próprio ocidente decretou, "para inglês ver", poem a nu aquilo que é uma das mais "valiosas" máximas da diplomacia mundial: entre países não há amizades, há interesses.

O caso dos cereais é especialmente interessante, porque a Polónia, que deu início a este processo de boicote ao milho e ao trigo ucraniano, provocando enormes prejuízos nas contas de Kiev para "alimentar" o esforço de guerra contra a Rússia, tem-se posicionado como o mais aguerrido aliado da Ucrânia, a ponto de, no ano passado, o seu embaixador na Alemanha, Andrei Melnik, ter chamado "salsicha de fígado" ao chanceler Olaf Scholz devido a um atraso na entrega de armamento aos ucranianos, sendo esse um dos mais estranhos arrepios às normas diplomáticas em muitos anos.

E, apesar disso, é a mesma Polónia que, à primeira dificuldade para os seus interesses nacionais - disputa dos cereais ucranianos, que entram na União Europeia beneficiando de uma redução circunstancial de taxas muito expressiva, gerando problemas aos agricultores polacos -, se apressou a fechar a fronteira aos grãos do seu vizinho, amigo e aliado.

Mas a hipocrisia, provavelmente, é mais ruidosa ainda no que diz respeito às manobras dos EUA e da União Europeia para continuarem a adquirir petróleo russo por portas travessas, porque o sector energético exportador russo é o garante de Moscovo para aguentar o seu esforço de guerra, sendo, de longe, a sua principal fonte de rendimentos.

E, agora, depois deste relatório do CREA, fica mais claro que nunca, embora já existissem muitos indícios de que assim estava a ser, que são as brechas na muralha ocidental que estão a responder, em parte, pelo menos, pelo sucesso do Kremlin tanto na continuação do financiamento da guerra, como no reconhecido sucesso da sua política económica que, nem colapsou, como previam os países ocidentais, e tem, ainda mais relevante, contido com melhores resultados que os europeus ocidentais e os norte-americanos, a inflação e a quebra no PIB e no crescimento da inflação.

Se há ou não ilações a tirar deste contexto, onde fica em evidência a hipocrisia da política global para os países da linha da frente ocidental, provavelmente não, porque, e é o que se regista já, tudo continuará como sempre, com as palavras a não corresponderem aos actos, mas para África, América Latina e Ásia o assunto devia, no mínimo, ser alvo de uma profunda reflexão, porque, como é o caso do Triângulo de Penrose, na foto, por vezes, quanto mais se olha, mais dúvidas surgem na definição do contorno daquilo para onde se está a olhar...