Depois da África Oriental e Médio Oriente, onde milhões se confrontam com escassez crescente de cereais para suprimir as suas necessidades alimentares básicas devido aos efeitos da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, os dois maiores produtores de cereais do mundo, de onde não é exportado um grão de trigo, milho ou centeio, bem como fertilizantes, desde 24 de Fevereiro, é agora a vez de países como o Sri Lanka, Filipinas ou Indonésia entrarem para a lista do risco global de fome depois de a Índia ter, também, fechado a porta à exportação de trigo de forma a garantir o abastecimento interno, ameaçado por uma vaga de calor recorde este ano.
O trigo, o alimento base de milhões de pessoas no norte de África, África Oriental, Médio Oriente e noutras partes do mundo, começa a ser usado como arma, com cada vez mais países a procurá-lo e cada vez mais Governos a impedir a sua comercialização para o exterior, o que levou a que, por exemplo, no mercado internacional, o bushel, unidade de medida equivalente a 25 kg, esteja a valer perto de 12,4 USD, em Chicago, EUA, a mais importante referência global no comércio de cereais, quando, antes do conflito valia menos 40% e antes da pandemia da Covid-19, em 2019, estava abaixo de 5 USD.
Com esta crescente escassez, depois de a Rússia, que produz 25% do trigo em todo o mundo, e 30% dos principais cereais consumidos no planeta, ter suspendido as exportações por razões de segurança interna, tal como a Ucrânia, com produções em tudo semelhantes às da Rússia, devido à guerra, não são só os países dependentes que não encontram mercado para se abastecerem, são também as agências das Nações Unidas que enfrentam cada vez mais dificuldades para encontrar cereais de forma a socorrer populações inteiras em situação de grave penúria alimentar.
Mas este problema pode ainda acelerar em gravidade com a redução das exportações nos Estados Unidos da América, que já estão este ano 3% abaixo da média e as previsões apontam para que no período de 2022/2023 esta redução no volume das vendas para o exterior atinja um recorde de 1971. Ao mesmo tempo, a produção ucraniana, devido à guerra, terá este ano uma baixa de 35%, para menos de 22 milhões de toneladas. Tudo somado, fez subir o preço do trigo perto de 46%, para próximo dos 440 USD/t.
O impacto desta redução de cereais disponíveis não se fica pelos países pobres e dependentes de trigo devido às características sociológicas alimentares, como, por exemplo, o Egipto ou os países do Médio Oriente e África Oriental, também nos países mais desenvolvidos a carência de cereais está a provocar problemas sérios devido à forte subida dos preços que levou ao aparecimento, como é o caso da Europa, dos primeiros sinais de insatisfação popular, estando os cerais a contribuir de forma substancial para os valores recorde de inflação, como é o casos do recorde 40 anos nos EUA, a atingir os 8,5%.
Com este cenário em pano de fundo, e como o próprio Secretário-Geral da ONU, António Guterres, já veio a público advertir, o conflito no leste europeu está em vias de provocar um número elevado de mortes a milhares de quilómetros de distância, sendo esse o efeito colateral mais devastador deste e de muitas guerras a que o mundo já assistiu devido ao facto de ter nos dois lados das barricadas os dois maiores produtores de cereais em todo o planeta.
A disseminação da fome a partir dos estilhaços do conflito entre a Rússia e a Ucrânia está, claramente, como se pode observar de forma mais evidente a cada dia que passa pelos editoriais na imprensa de todo o mundo, mas especialmente na produzida fora do universo dos chamados países ocidentais, a gerar um cansaço limite e consequências que em muito ultrapassam os países directamente envolvidos na frente de batalha.
Boas novas da Azovstal
Com a permissão da Rússia para a saída de perto de 270 combatentes que estavam entrincheirados na metalúrgica Azovstal, na cidade de Mariupol, os analistas admitem que pode estar a ser tentado mais um passo de aproximação a um entendimento entre Kiev e Moscovo para acabar, num prazo relativamente curto, com esta guerra.
Alguns media russos estão mesmo a noticiar que as chefias militares ucranianas já autorizaram a rendição da totalidade dos combatentes entrincheirados na Azovstal, mas essa possibilidade ainda está por verificar, visto que as forças russas mantêm o cerco ao local.
Os combatentes que saíram esta madrugada, de segunda-feira para hoje, terça. 17, são homens que estavam gravemente feridos nos subterrâneos da gigantesca unidade metalo-mecânica, foram transportados pelas forças russas para hospitais na região de Donetsk, sob domínio russo ou das forças populares independentistas de Donetsk, depois de dois meses de resistência ao cerco russo a este local, onde ainda permanecem, segundo os media russos, perto de mil elementos do Batalhão Azov, de génese nazi-fascista.
O Presidente Volodymyr Zelensky tem feito múltiplos pedidos, da ONU ao Papa, passando por mediadores como a Turquia ou Israel, para que estes combatentes sejam, na sua totalidade, levados para um país terceiro, mas contou sempre com a oposição da Rússia, que, segundo analistas, espera a rendição destes homens do batalhão Azov como ajuste de contas pelo facto de terem sido eles a manter sob fogo cerrado as repúblicas independentistas de Donetsk e Lugansk, de maioria russófona clara, ao longo de oito anos nos quais morreram mais de 14 mil pessoas.
Entretanto, o Presidente ucraniano adianta que entre os militares há feridos graves, "que estão a receber ajuda médica", não adiantando quantos podem ter ainda permanecido nos subterrâneos da Azovstal. Sabe-se, todavia, que os que agora saíram para áreas sob controlo russo poderão, em breve, ser alvo de uma troca de prisioneiros para a qual já decorrem negociações, segundo o líder ucraniano.
Volodymyr Zelensky saudou a retirada dos militares da fábrica Azovstal, na sequência do cessar-fogo acordado com Moscovo, tendo a retirada sido possível "graças às acções dos militares ucranianos, das Forças Armadas da Ucrânia, dos serviços de informação, da equipa de negociação, do Comité Internacional da Cruz Vermelha e das Nações Unidas porque a Ucrânia precisa de heróis ucranianos vivos".
"Este é o nosso principal objectivo", acrescentou, explicando que o trabalho prosseguia "para os fazer regressar a casa, um trabalho que requer delicadeza e tempo", tendo em conta que estes combatentes foram levados para unidades de saúde localizadas em territórios sob controlo russo.
E há outras razões para que as forças russas, ao fim de 82 dias de guerra, não permitam a saída destes militares entrincheirados nos tuneis da Azovstal para locais foram do seu domínio absoluto, como admitem especialistas militares, como, por exemplo, a possibilidade de ali estarem entrincheirados militares estrangeiros, eventualmente de países da NATO, que ou combateram juntos com os ucranianos ou lhes estiveram a dar formação militar e são agora "troféus" de guerra valiosos para o Kremlin.
E ainda para manter fora do alcance russo alegadas instalações proibidas, como laboratórios de armamento químico ou biológico, como os russos acusam os norte-americanos de terem gerido ao longo de anos na Ucrânia e que, por exemplo, a actual sub-Secretária de Estado para os Assuntos Políticos dos EUA, Vitoria Nuland, admitiu ser verdade em declarações no Congresso dos EUA.
Apesar destes constrangimentos, a saída de 264 militares feridos das trincheiras da Azovstal é, claramente, um gesto de boa vontade da Rússia, que tem o local cercado e sob permanente fogo cerrado de artilharia, apesar de ser já claro que estas forças ucranianas já não desempenham qualquer papel na defesa da cidade de Mariupol, há semanas totalmente nas mãos das forças russas.
Este, a cidade de Mariupol, era o derradeiro obstáculo das forças russas na ligação terrestre entre a república russófona de Donetsk e a Península da Crimeia, anexada por Moscovo em 2014, o que permite maior mobilidade militar para a continuação da ocupação territorial da costa ucraniana do Mar Negro, em direcção a Odessa, ligando, eventualmente, à Transnistria, região russófona semi-independente da Moldova.
O reforço da capacidade de combate de Moscovo
Sem que as autoridades militares russas o tenham desmentido, para a frente de combate, o Kremlin está a enviar largas dezenas de milhares de homens das unidades militares do centro e do oriente da Rússia, de forma a reforçar o poderio militar russo no Donbass, onde decorre aquela que os dois lados já admitiram que é a batalha decisiva, ou batalhas, desta guerra e que os especialistas miliares definem como sendo a expulsão das forças ucranianas das repúblicas independentistas de Donetsk e Lugansk, e a ligação terrestre entre o Donbass e a Península da Crimeia, o que daria a Moscovo o controlo sobre todo o Mar de Azov e uma boa parte do Mar Negro.
Segundo as informações disponíveis, e dependendo das fontes, do lado russo podem estar entre 120 e 160 mil militares em avanços lentos nas frentes de combate, com reforços permanentes vindo da Rússia, procurando, tanto de sul, como de Norte, avançar e cercar as entre 80 e 100 mil tropas ucranianas, que se concentram na frente do Donbass.
O foco das forças russas é não só expulsar os ucranianos das "suas" repúblicas do Donbass (Donetsk e Lugansk) como garantir que cortam a capacidade de os aliados de Kiev conseguirem fazer chegar o material militar, desde os mísseis anti-aéreos e anti-carro, Javelin e Stinger, às viaturas blindadas enviadas pelos EUA e aliados ocidentais, para o que estão a empregar centenas de mísseis de longo, médio e curto alcance, mas com forte precisão, como os M-54 Kalibr, que estão a ser disparados dos navios estacionados no Mar Negro e da Crimeia, e os 9K-720 Iskander, de menor alcance mas mais manobráveis porque podem ser deslocados em viaturas de rodas nas imediações do campo de batalha.
Com este armamento sofisticado, os russos estão a visar vias férreas, pontes e aeródromos ou mesmo aeroportos, como sucedeu na passada semana, em Odessa, onde o aeroporto desta que é uma das maiores cidades do país, foi parcialmente destruído porque ali estava armazenada grande quantidade de equipamento militar enviado do exterior pelos países da NATO.
Já os ucranianos, sem capacidade de acção aérea, procuram, através dos meios sofisticados que estão a receber dos seus aliados, com realce para os mísseis antiaéreo e anticarro Stinger e Javelin, cuja eficácia tem forçado as colunas russas a refrear os avanços, e que podem ser o factor de equilíbrio neste conflito, não só atrasar o avanço russo para os seus objectivos como ganhar tempo de forma a desgastar as forças russas a ponto de conseguir que o Kremlin aceite negociar de forma mais vantajosa para Kiev.
Nos últimos dias, as unidades de combate ucranianas retomaram a cidade de Kahrkiv, a apenas 50 kms da Rússia, no norte da Ucrânia, chegando mesmo à fronteira do país vizinho. No entanto, esta reconquista ucraniana por não ter grande valor militar porque as forças russas, segundo alguns analistas, só permaneciam na cidade como forma de fixar forças ucranianas mantendo-as afastadas do foco principal da guerra, que é a região do Donbass.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar paara a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas der fora o sector energético, gás natural e petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 4,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.