São várias as razões para que o conflito na Ucrânia se mantenha a ferro e fogo ao fim de oito meses de combates, avanços e recuos, com milhares de mortos, feridos e desalojados, de ambos os lados, mas uma delas, como afirmam alguns dos analistas mais atentos às razões históricas para esta crise mortífera, é que esta guerra nunca foi entre ucranianos e russos, foi sempre um gatilhar entre os países ocidentais da NATO, com recurso aos ucranianos, como carne para canhão, e a Federação Russa.
E se Moscovo e Washington concluírem que nenhum dos lados, ambos nuclearmente convictos de que não perdem mas cientes até ao tutano de que também não podem ganhar, porque isso seria um holocausto nuclear certo e seguro, seguindo para a mesa das negociações como forma de sair ambos de cara levantada, o regime de Volodymyr Zelensky dificilmente subsistiria.
Mas, provavelmente, a Ucrânia, além dos territórios perdidos para os russos, veria outros a atrair as atenções dos vizinhos do oeste, como a Polónia ou a Roménia, que desde a II Guerra Mundial perderam parte da sua geografia histórica para a actual linha de fronteiras que definem território oficial ucraniano. Porém, um quadro negocial bem desenhado por Kiev, poderia dar à parte ucraniana algumas garantias de continuidade do Estado.
Então, porque não se faz já esse caminho? Porque ainda não chegou a hora e antes de as partes se sentarem, há que ajustar algumas contas.
Por exemplo, a questão política é essencial nos Estados Unidos, que são o maior financiador do esforço de guerra ucraniano, seja com material militar, seja com a entrega a Kiev de avultadas somas em dinheiro para manter o Estado que está à beira da bancarrota com uma quebra no PIB, segundo o FMI, de 35 % em 2022 e em 2023 pode ser ainda mais grave, mas o Fundo Monetário Internacional, no seu último relatório, nem sequer se atreve a avançar com prognóstico.
Ou seja, o Presidente Joe Biden não pode mostrar fraqueza neste momento com eventuais cedências a Moscovo, depois de o seu Secretário de Estado, Antony Blinken, e o seu Secretário da Defesa, Lloyd Austin, terem defendido abertamente que a Rússia tem de ser derrotada no campo de batalha, porque tem umas cruciais eleições intercalares a 08 de Novembro, onde corre o risco, segundo as sondagens, de perder a maioria no Congresso, tanto no Senado como na Câmara dos Representantes, o que o deixaria de mãos atadas para aplicar o seu plano anti-crise que passa por combater uma inflação recorde de quase meio século e uma quase certa recessão até ao fim do ano, bem como veria aumentadas as dificuldades em manter o fluxo pantagruélico de equipamento militar e dinheiro para Kiev, estimado já em mais de 40 mil milhões de dólares.
E a União Europeia, com a sua presidente da Comissão, Ursula Leyen, e o chefe da diplomacia dos 27, Josep Borrell, como dois falcões de guerra que seguem as linhas de orientação de Washington sem pestanejar, só poderão, eventualmente, baixar o tom de ameaça a Moscovo quando do outro lado do Atlântico chegar a indicação para mudar o azimute para a mesa das negociações para acabar com a guerra na Ucrânia, porque esta está a impactar de forma desastrosa na economia global sem que seja possível ver o seu fim à vista, mesmo com as subidas substanciais das taxas de juro pela FED norte-americana e pelo Banco Central Europeu que atacam a inflação mas esmagam a economia das pessoas.
Alguns analistas admitem que existe ainda outra razão sólida para que esta guerra seja conduzida para a dureza das negociações, que é a flamejante mudança de governos na Europa ocidental, a cada eleição que ocorre, com partidos da defesa da guerra a serem varridos do poder por causa das crescentes dificuldades sociais e o aumento do custo de vida, como na Suécia, na Itália, com sérios avisos já na França, no Reino Unido os Conservadores estão à beira do abismo na Bulgária, mudou abruptamente, e isso parece estar ainda na calha em países, entre outros, como a Chéquia, a Roménia ou mesmo na Eslováquia...
Mas... antes das negociações, reinam as explosões
Depois do ataque à Ponte da Crimeia, há cerca de duas semanas, a Rússia deu início a uma nova fase na guerra, que já vinha a ser preparada detrás, depois da mobilização de centenas de milhares de soldados, com ataques em contínuo a infra-estruturas eléctricas e de comunicações na Ucrânia, com Kiev a ser fustigada por sucessivas vagas de ataques com drones kamikazes, muitos deles a alvejarem, como recados escaldantes, locais estratégicos politicamente, como as habitações de elementos importantes na estrutura de comando militar ucraniano, dos serviços secretos, e mesmo da elite política em redor de Zelensky, como o disse o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Dmitri Kuleba, quando admitiu que um míssil russo caiu muito perto do sítio onde estava "protegida" a sua família.
O que parece estar a marcar este momento do conflito, que está a chegar ao fim do seu oitavo mês, a 24 de Outubro, é claramente a gestão do tempo, de forma a procurar ganhar posições de um e do outro lado, antes da imposição das regras do Inverno gelado naquelas latitudes, que pode chegar a temperaturas negativas de 30 graus, com a famosa contra-ofensiva ucraniana em Kherson, no sul, e a norte, em Kharkiv, com os avanços russos em Bakhmut, na província de Donetsk, onde falta conquistar pelo menos um terço do seu território.
Isto, porque, quando a dureza das batalhas for substituída pelo atrito das negociações, a Rússia dificilmente abdicará de manter os territórios que já conquistou e, de acordo com a sua lei interna, anexou à Federação Russa, juntando à Crimeia, que o fez já em 2014, as regiões de Zaporijia, Kherson, Donetsk e Lugansk, o que deverá satisfazer o Kremlin, mas não deixará de garantir as outras três questões essenciais: a neutralidade ucraniana, deixando de lado a questão da adesão à NATO, o fim da perseguição aos falantes de russo e à cultura em língua russa e ainda, se for negociável, a saída de cena de Zelensky e da sua entourage mais próxima politicamente e o fim das unidades militarizadas de cariz nazi-fascista.
Do lado de Kiev, e dos aliados ocidentais, a Rússia vai ter de ceder garantias sólidas de que não voltará a atacar a Ucrânia, com a criação, provavelmente, de uma organização de países para fiscalizar essas garantias, a efectivação de um plano de reconstrução da Ucrânia e ainda uma carência de vários anos nos compromissos financeiros do país com instituições internacionais como o FMI, ou ainda a adesão acelerada à União Europeia, para a qual Moscovo pode ter eventuais condições estridentes.
Jogos de guerra nucleares
Tal como na linha da frente, russos e ucranianos procuram avançar os metros possíveis para mais tarde isso valer ganhos no mapa das negociações, paralelamente jogam-se as últimas cartadas da persuasão, como sejam os exercícios da NATO com a sua infra-estrutura nuclear, aviões e sistemas de artilharia com capacidade nuclear, no leste europeu, o que é visto pelos russos como uma situação desafiante, que levou a uma resposta à altura, com a movimentação da sua capacidade de resposta igualmente nuclear expandida para a Bielorrússia, equipando mesmo aviões de guerra deste país com capacidade de deslocar misseis nucleares.
Este exercício teve início esta segunda-feira e termina em finais de Outubro, contendo um redobrado simbolismo e risco devido à situação de guerra na Ucrânia, embora o líder da NATO, Jens Stoltemberg ter vido a terreiro garantir que se trata de exercícios agendados previamente e sem ameaça qualquer à Rússia.
Denominada "Steadfast Noon", esta operação de aprimoramento da capacidade de ataque nuclear da NATO tem sede este ano na Bélgica e nele intervêm 14 países, com perto de uma centena de aviões de vários tipos de capacidades diferenciadas de intervenção numa reacção ou ataque nucleares ao "inimigo" que, no caso, é evidente ser a Rússia e, eventualmente, noutro patamar, a China.
Isto levou, embora com garantias de se tratar de um momento de operacionalização "normal", igualmente previamente agendados, e não uma resposta à NATO, a Rússia conduzirá nos próximos dias, até final de Outubro, os seus exercícios nucleares denominados "Grom".
Nos exercícios "Grom" Moscovo vai testar os seus bombardeiros nucleares, submarinos e os sistemas de mísseis, podendo voltar a fazer uma demonstração de força com os seus mísseis hipersónicos de última geração, com capacidade para até 20 ogivas nucleares, o que seria suficiente, em tese, para destruir um país como a França.
Em 1962 foi possível. E agora?
Este momento histórico só tem similaridade com a crise dos misseis em Cuba em 1962 quando a então URSS procurou instalar sistemas de suporte para misseis nucleares na ilha de Fidel Castro, no "quintal" dos norte-americanos, quando todos os analistas admitem que o mundo esteve à beira de um armagedão.
Este momento de tensão sem igual até então, foi resolvido com negociações de extrema dureza entre os Presidentes dos EUA, John Kennedy, e da então União Soviética, Nikita Khrushchev, em plena Guerra Fria.
A Guerra Fria não chegou a transformar-se numa catastrófica Guerra "Quente" porque aqueles dois homens, Kennedy e Khrushchev, souberem ler os sinais e optaram por negociar uma saída airosa para ambos, sendo que o russo acabou por ser pior julgado pela História, embora tenha conseguida que a NATO retirasse os seus famosos Jupiter MRBMs da Turquia enquanto os soviéticos desmantelavam os seus sistemas R.12, ambos de médio alcance mas com forte capacidade de deslocar múltiplas ogivas nucleares.
Face ao crescendo das tensões na frente leste da NATO, fronteira com a Rússia, e depois de o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, ter, irresponsavelmente, pedido um ataque nuclear aos EUA contra a Rússia, e de a primeira-ministra britânica ter admitido publicamente estar na disposição de empregar o seu arsenal nuclear contra Moscovo, o que levou Putin a desencadear uma "febre" atómica global ao garantir que activará todos os seus meios para defender a Rússia de ataques existenciais e que isso não se trata de "bluff", só a mesa das negociações pode impedir que o mundo faça uma viagem no tempo a 1962, voltando a cheirar o risco de extinção mutuamente garantida.
Moscovo reforça linha defensiva bielorrussa
Entretanto, o Ministério da Defesa russo confirmou a chegada do primeiro contingente de soldados à fronteira bielorrussa, de um total de 9.000, no âmbito do acordo entre os dois países para reforçar a linha da guerra na Ucrânia.
"Os primeiros comboios com soldados russos chegaram à Bielorrússia", disse o porta-voz do Kremlin em declarações à agência russa TASS, um processo que durará "vários dias".
A Rússia estima que o número total de soldados não exceda 9.000, neste novo destacamento na Bielorrússia, um Estado aliado que tem usado como plataforma anexa para operações na invasão ao território ucraniano.
Os presidentes da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, e da Rússia, Vladimir Putin, assinaram este compromisso na passada segunda-feira, numa reunião seguida de repetidas condenações por parte da Ucrânia, que nega a ameaça de que Minsk diz ser alvo.
O Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, propôs o envio de observadores internacionais para a região.
O Ministério da Defesa bielorrusso já tinha avançado no sábado a chegada das primeiras tropas russas, iniciando um destacamento que, diz, pretende "reforçar a proteção" do território bielorrusso no contexto da guerra na vizinha Ucrânia.
O governo de Lukashenko insiste que se trata apenas de fins defensivos, numa tentativa de afastar os receios de uma intervenção clara ao lado da Rússia.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 5,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.