Quando se sentar à mesa, Sergei Lavrov, com 71 anos, um dos mais experientes diplomatas do mundo nos dias que correm, com 18 anos à frente da diplomacia da Federação Russa, onde chegou depois de 10 anos como representante permanente nas Nações Unidas, entre 1994 e 2004, sabe que o seu interlocutor já ouviu do seu Presidente que a Ucrânia está pronta a abdicar da entrada na NATO, que era o principal obstáculo e foi o rastilho que levou ao início da invasão, ou "operação militar especial" russa, a 24 de Fevereiro. Mas não só...

Lavrov sabe ainda que o seu homólogo ucraniano também tem na "caixa de ferramentas" para trabalhar neste encontro histórico, mas que pode vir a fazer parte da História, a abertura manifestada pelo seu Presidente, Volodymyr Zelensky, para analisar a questão da Crimeia, que a Rússia integrou no seu território, anexou, segundo a versão ucraniana, depois de um referendo, em 2014, e a mais recente questão do Donbass, onde Moscovo já reconheceu as duas repúblicas de Donetsk e Lugansk, e que Kiev admite poder rever o seu estatuto, embora o resto seja para a mesa das negociações.

Mas Dmytro Kuleba, com "apenas" 41 anos, um diplomata encartado e especialista em comunicação, não tem na idade propriamente uma desvantagem face ao seu mais experimentado interlocutor, porque chega a este momento, que será, seguramente, o mais marcante da sua vida se vier a conseguir um avanço substancial nesta caminha para a paz sem que o seu país perca a face, com uma passagem reconhecida com mérito pelos seus pares pelo Governo, ante dos Negócios Estrangeiros, como vice-primeiro-ministro, e ainda como representante permanente da Ucrânia no Conselho Europeu entre 2016 e 2019.

E Kuleba sabe que o seu "opositor" também ali chega com elasticidade diplomática previamente preparada, como seja o facto de o seu Presidente, Valdimir Putin, ter deixado cair uma das grandes exigências, que era a substituição do Governo de Zelensky, que considerava como estando "infectado" por "nazis e drogados", passando a tê-lo como válido interlocutor, ao mesmo tempo que deixava cair outra questão, que, não sendo totalmente clara, nunca foi propriamente dada como certa, que é a possibilidade de uma adesão da Ucrânia à União Europeia, apesar das referências anteriores a este país como parte integrante historicamente da Grande Rússia.

E não é tudo. Kuleba sabe ainda que à mesa consigo está um homem consciente da forte pressão que o seu país está a sofrer com as pesadas sanções, mais de 5.500, aplicadas contra a sua economia e contra os seus mais proeminentes dirigentes, incluindo-o também a si, que está a gerar contestação interna devido às consequências que começam a ser cada vez mais visíveis, tendo a mais simbólica sucedido na quarta-feira, que foi o anúncio do fecho das 850 lojas do MacDonalds, na Rússia.

E Dmytro Kuleba tem ainda outra garantia de que a parte russa pode aceitar apressar uma solução que acabe com o troar dos canhões, que é a cada vez mais sensível resistência das forças ucranianas ao poderoso Exército russo, armada diariamente com material bélico ocidental, desde logo os temíveis misseis Javelin antiblindado e os antiaéreos Stinger.

Mas, no essencial, o que Kuleba pode atirar com garantia de sucesso total à "cara" de Sergei Lavrov é uma frase, desde que se dê como certo que as cedências na questão da adesão à NATO, a questão da Crimeia e a questão do Donbass, vão ser aceites por ambas as partes: "o que é que o senhor quer mais!?". Ao que Lavrov só poderá responder: "Já não há nada, além do normal acertar pormenores pelos nossos Presidentes, que obstaculize o fim do conflito".

E se assim suceder, com eles, na página que os livros de História dedicarem a este momento, vai estar o seu homólogo turco, Mevlüt Çavusoglu, que se mostrou incansável para que tal viesse a ser possível, mesmo que isso tenha sucedido depois de o seu Presidente, Recep Erdogan, ter feito a sua parte numa demorada conversa com o senhor do Kremlin, Vladimir Putin.

É isso que o mundo quer ouvir

E isso é tudo o que o mundo quer ouvir, até porque os mais de 2,4 milhões de refugiados ucranianos que já estão nos países vizinhos começam a criar embaraços logísticos na Polónia e na Roménia, mas também na Moldavia, ou ainda porque o preço dos combustíveis e do gás natural começa a atingir patamares de crise económica global semelhante à que se observou em 2008, com o subprime americano, ou ainda com o que sucedeu no início de 2020, com a pandemia da Covid-19.

Isto, porque a Rússia, que viu já esta semana os EUA proibirem a importação do seu petróleo e gás natural, o que é substancialmente simbólico devido à escassa percentagem que a maior economia mundial importa anualmente, sendo praticamente independente do ponto de vista energético, mas que viu, e isso é menos simbólico, a União Europeia a anunciar um vasto programa de criação de alternativas que levem à independência energética da Rússia, que hoje representa mais de 40% do gás consumido nos 27 países deste bloco e perto de 30% do seu crude.

E, face à dependência da economia russa da exportação de crude e gás, apesar de ter já estabelecido acordos de substituição de destinos para as suas exportações com a China - que já se colocou diplomaticamente contra as sanções ocidentais a Moscovo - e com a Índia, esta ameaça europeia pode ser igualmente um "estímulo" a que Vladimir Putin facilite uma saída airosa para todos deste imbróglio histórico em que o mundo se volta a emaranhar quase 80 anos após a II Guerra Mundial.

Outra pressão clara é, ainda no capítulo da dependência energética do mundo do crude russo, o facto de os países do Médio Oriente, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos se terem recusado, a pedido dos EUA, a aumentar a produção para tapar o buraco que seria deixado pelo petróleo Made in Russia, tendo os jornais americanos avançado na quarta-feira que os lideres destes países se recusaram mesmo a atender uma chamada do Presidente Joe Biden.

Mas também a pressão ocidental sobre a Ucrânia pode levar o temerário Presidente Zelensky a começar a ceder na sua bravata contra o poderoso invasor, visto que os americanos deram um sinal de que a NATO e Washington têm limites claros de até onde podem ir no apoio a Kiev, como foi disso exemplo claro o facto de a Polónia se ter disponibilizado a enviar aviões de guerra MIG-29 para a Ucrânia mas foi travada nessa ideia pelos EUA, visto que esse poderia ser um passo decisivo no envolvimento da NATO num confronto directo com a Rússia, o que Putin já avisou que seria o início de uma guerra nuclear devastadora.

Outra pressão é aquela que pode surgir com o paulatino espalhar de uma crise alimentar pelo mundo, especialmente pelos países menos desenvolvidos, considerando que a Rússia e a Ucrânia, são, de longe, os maiores produtores de cereais do mundo - trigo, milho, cevada e colza, em destaque - e ainda de fertilizantes essenciais para a agricultura em todo o mundo.

Isso mesmo é já visível no aumento, tal como nos mercados energéticos, nos mercados das commodities do sector alimentar, com países essenciais à oferta nessa área a começarem a fechar a porta das exportações, o que pode gerar em breve crises de enorme gravidade tanto na Ásia como em África, especialmente nos Estados mais dependentes das importações alimentares.

Com este cenário em pano de fundo, mesmo que hoje os ministros Lavrov e Kuleba não anunciem um imediato cessar-fogo, como, por exemplo, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, em nome do "mundo", tem pedido de forma insistente, dificilmente serão fechadas as portas para novas tentativas ou a abertura de um corredor para que a solução ocorra a um nível superior, entre Presidentes, com o envolvimento das outras potências, como a China, onde o Presidente Xi Jinping já disse estar disponível, e dos EUA, onde o Presidente Joe Biden ainda se mantém mais como líder da "coligação" global contra Putin que um potencial mediador de peso.

Contexto

A 24 de Fevereiro, depois de semanas de impaciente expectativa, as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte vital das suas garantias de segurança soberanas, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de KIev da soberania russa da Península da Crimeia, integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1992, com o colapso da União Soviética.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem ao grandes centros urbanos do país.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados a sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, em mais de 60%. Estas sanções abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios...

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página, inclusive as suas consequências económicas, como o impacto no negócio global do petróleo.