Em resposta às declarações feitas nas últimas semanas pelos Presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, sobre a União Africana ter uma palavra a dizer no esforço de intermediação junto de Moscovo e de Kiev para que seja possível um desanuviamento do conflito, no imediato, e um acordo de paz, depois, o actual líder da organização pan-africana, Macky Sall não se fez rogado e aceitou o desafio, anunciando uma deslocação às duas capitais.
Macky Sall vai a Moscovo e a Kiev com um mandato claro da União Africana representar o continente e para responder directamente aos pedidos de Putin e Zelensky de que gostariam de falar com lideres africanos sobre este conflito na Ucrânia no sentido de ouvir as suas sensibilidade e, naturalmente, contar com o seu contributo para lubrificar o mecanismo bilateral de negociações que esta emperrado há semanas, a ponto de Moscovo ter acusado recentemente Kiev de ter desistido de conversar, ponto fim unilateralmente ao processo negocial que foi criado logo após o avanço das forças russas sobre a Ucrânia, a 24 de Fevereiro.
Esta deslocação de Sall esteve prevista para 18 de Maio, embora não tenha sido previamente anunciada, como, de resto, têm feito todos os lideres que se deslocam a Kiev, por razões de segurança, apontando agora o líder africano para que o périplo pelo leste europeu aconteça "assim que estiverem resolvidos" os problemas de agendamento.
"Vou a Kiev e a Moscovo assim que estiverem resolvidos os problemas de agendamento", disse Macky Sall, acrescentando que estão ainda em curso esforços para possibilitar um encontro entre os Presidentes russo e ucraniano com os lideres africanos que assim o desejem", o que poderá suceder já "nas próximas duas a três semanas".
Macky Sall, que assumiu o cargo na União Africana no início de Fevereiro, cerca de três semanas antes do início da "operação militar especial" da Rússia na Ucrânia, apesar de o Senegal ser um dos países africanos com relações mais intensas e sólidas com a União Europeia e EUA, que estão na linha da frente das pesadas sanções aplicadas à Rússia, absteve-se, no início de Março, na votação de uma resolução da Assembleia-Geral das Nações Unidas que visava o fim da agressão russa, uma decisão que lhe permite agora assumir um papel de maior preponderância enquanto eventual mediador de possíveis conversações directas entre Putin e Zelensky.
A guerra na Ucrânia é um peão no xadrez mundial quando EUA ameaçam China
Esta guerra na Ucrânia, com milhares de mortos, feridos e mais de 6 milhões de refugiados ucranianos, mas cujo impacto ultrapassou há muito as suas fronteiras, seja na gigantesca inflação, desemprego e protestos populares que assolam os países ocidentais, seja a fome galopante que já está a criar pânico em países africanos no oriente e norte do continente, e no Médio Oriente, embora o problema já tenha também impressões vincadas na América Latina, pode ser um mero peão no xadrez do risco global depois da deslocação do Presidente norte-americano à Ásia nos últimos três dias.
Isto, porque, pela primeira vez, e de forma directa, um Presidente norte-americano ameaçou a China com um confronto militar directo se Pequim optar por forçar a integração de Taiwan sob o domínio político do Governo de Pequim com uma invasão da ilha.
Apesar de Joe Biden sublinhar, em Tóquio, no Japão, depois de ter estado na Coreia do Sul, que os EUA concordam com uma única China se isso partir de um processo negocial, não aceitam, e disse-o de forma inequívoca, é que isso resulte de uma imposição militar por Pequim, o que levaria os Estados Unidos a apoiar militarmente Taiwan, o que é o mesmo que dizer que as forças norte-americanas estariam em confronto directo com as forças chinesas.
Num cenário desses, a guerra na Ucrânia seria rapidamente esquecida, porque se estaria perante um confronto com ainda mais ingredientes que o da Ucrânia para levar o mundo a uma guerra devastadora e, provavelmente, nuclear...
Alguns analistas, como o major-general Agostinho Costa, vice-presidente do EuroDefense, na CNN Portugal, sublinha que o confronto com a China é o grande jogo dos EUA, porque é a única potência que pode desafiar a hegemonia planetária de Washington, considerando que se trata, ao contrário da Rússia, que é apenas uma "superpotência militar mas um anão económico", a China é uma grande potência militar, com o 3º maior arsenal nuclear do mundo, e uma superpotência económica que ombreia com os americanos.
Alias, este analista sublinha ainda, como, de resto, é uma tese sobejamente conhecida por estar a ser analisada e estudada em alguns dos mais relevantes think thanks mundiais, que os EUA fomentaram a guerra na Ucrânia para desgastar a Rússia e separar este país da China, de forma a que, depois, possam dedicar-se a fragilizar o potencial de rivalidade chinês, para garantir que os EUA permanecem como a única superpotência planetária e sem rivalidade.
Para já, Biden conseguiu obter de Pequim uma resposta que não é distinta de outras, e que aconselha os norte-americanos a não subestimarem a determinação chinesa.
"Que ninguém subestime a firmeza e a determinação da China, que ninguém ouse desafiar a firme vontade e capacidade da China e do seu povo para defender a sua integridade territorial e a sua soberania", atirou um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China a Joe Biden.
Wang Wenbin disse ainda ao Presidente dos EUA para que não se exponha desnecessariamente ao risco de estar a "mandar sinais errados" aos independentistas de Taiwan, porque a determinação do povo chinês é insuperável. E nada pode beliscar o princípio de "uma só China" que Washington aceita e, por isso, deixou de ter relações diplomáticas formais com Taipé, embora sejam o grande fornecedor de equipamento militar à ilha rebelde.
Desconfiança que vem de longe
Para evitar uma perda de controlo da situação, os dois lideres das duas maiores economias do mundo, cuja possibilidade é agora mais real que nunca, como o demonstram as sucessivas notícias de que a China está numa desenfreada corrida ao armamento avançado, investindo como nunca em tecnologia militar, enquanto os EUA, por exemplo, procuram cercear os caminhos ao "Império do Meio", como também é conhecido o gigante asiático, seja através de novas alianças no Pacífico, como a Aukus, que junta americanos, australianos e britânicos, seja através de ameaças directas, como aaba agora de suceder.
Mas estas declarações explosivas de Biden não surgem sem um contexto preparatório, como é o facto de terem arquitectado uma nova aliança estratégica que abrange a região do indo-pacífico, como o Novo Jornal explica aqui, formalizada em Setembro de 2021, e que passa, no essencial, por militarizar a Austrália com submarinos nucleares e outro armamento de ponta para que Camberra possa ser um travão a uma eventual procura de expansão chinesa nesta região.
Mas o cerne da questão está bem mais próximo da fronteira chinesa, alias, está no interior da China, como entende Pequim, que olha para Taiwan como parte do seu território indivisível, enquanto Taipé diz amiúde que antes a morte que tal sorte, estando em constante reforço da sua capacidade militar para fazer frente a "uma inevitável" invasão chinesa para repor a "normalidade".
O problema é que a capacidade militar de Taiwan é quase em exclusivo fornecida pelos EUA, que, apesar de reconhecerem por defeito que esta ilha "rebelde" é pertença da China, nunca deixou de a apoiar fora da diplomacia formal das Nações Unidas e se constituiu há décadas como protector geral do antigo bastião de Chiang Kai Chek, que em 1949 se refugiou na ilha em fuga dos revolucionários de Mao Tse Tung durante a guerra civil chinesa.
E com Taiwan surge o problema de todo o Mar do Sul da China, onde está em disputa a jurisdição sobre um largo conjunto de ilhas e ilhéus, envolvendo não só a China mas ainda Taiwan, Vietname, Brunei, entre outros... e onde os EUA mantém uma significativa presença militar que Pequim encara como uma ameaça à sua soberania.
E é neste contexto que Biden e Jinping se sentaram à mesa para dialogar pela última vez em finais de 2021... via telefone, fazendo depois deixar sair detalhes da conversa, como o insistente pedido de Xi a Biden para que este prefira relações entre ambos "sãs e estáveis" e Biden, concordando, apontou como solução a criação de mecanismos profilácticos para eventuais conflitos.
Isto, sublinhe-se, ainda a quase quatro meses do conflito na Ucrânia.
Através da agência estatal chinesa, Xinhua, ficou, então, a saber-se que o líder chines defendeu que "China e Estados Unidos devem respeitar-se mutuamente, coexistir em paz, cooperar, gerir de forma apropriada os assuntos internos e assumir as suas responsabilidades internacionais".
Xi JInping disse ainda "estar preparado" para "construir consensos" e "dar passos" para recuperar as relações bilaterais com os EUA em diálogo franco com Biden.
Já Biden, a partir de Washington sublinhou que "a competição entre os dois países não deve transformar-se num conflito, intencional ou não".
Para já, certo, certo é que esse conflito será um facto se Pequim optar pela ocupação militar para resolver o seu problema de Taiwan.
O reforço da capacidade de combate de Moscovo
Sem que as autoridades militares russas o tenham desmentido, para a frente de combate, o Kremlin está a enviar largas dezenas de milhares de homens das unidades militares do centro e do oriente da Rússia, de forma a reforçar o poderio militar russo no Donbass, onde decorre aquela que os dois lados já admitiram que é a batalha decisiva, ou batalhas, desta guerra e que os especialistas miliares definem como sendo a expulsão das forças ucranianas das repúblicas independentistas de Donetsk e Lugansk, e a ligação terrestre entre o Donbass e a Península da Crimeia, o que daria a Moscovo o controlo sobre todo o Mar de Azov e uma boa parte do Mar Negro.
Segundo as informações disponíveis, e dependendo das fontes, do lado russo podem estar entre 120 e 160 mil militares em avanços lentos nas frentes de combate, com reforços permanentes vindo da Rússia, procurando, tanto de sul, como de Norte, avançar e cercar as entre 80 e 100 mil tropas ucranianas, que se concentram na frente do Donbass.
O foco das forças russas é não só expulsar os ucranianos das "suas" repúblicas do Donbass (Donetsk e Lugansk) como garantir que cortam a capacidade de os aliados de Kiev conseguirem fazer chegar o material militar, desde os mísseis anti-aéreos e anti-carro, Javelin e Stinger, às viaturas blindadas enviadas pelos EUA e aliados ocidentais, para o que estão a empregar centenas de mísseis de longo, médio e curto alcance, mas com forte precisão, como os M-54 Kalibr, que estão a ser disparados dos navios estacionados no Mar Negro e da Crimeia, e os 9K-720 Iskander, de menor alcance mas mais manobráveis porque podem ser deslocados em viaturas de rodas nas imediações do campo de batalha.
Com este armamento sofisticado, os russos estão a visar vias férreas, pontes e aeródromos ou mesmo aeroportos, como sucedeu na passada semana, em Odessa, onde o aeroporto desta que é uma das maiores cidades do país, foi parcialmente destruído porque ali estava armazenada grande quantidade de equipamento militar enviado do exterior pelos países da NATO.
Já os ucranianos, sem capacidade de acção aérea, procuram, através dos meios sofisticados que estão a receber dos seus aliados, com realce para os mísseis antiaéreo e anticarro Stinger e Javelin, cuja eficácia tem forçado as colunas russas a refrear os avanços, e que podem ser o factor de equilíbrio neste conflito, não só atrasar o avanço russo para os seus objectivos como ganhar tempo de forma a desgastar as forças russas a ponto de conseguir que o Kremlin aceite negociar de forma mais vantajosa para Kiev.
Nos últimos dias, as unidades de combate ucranianas retomaram a cidade de Kahrkiv, a apenas 50 kms da Rússia, no norte da Ucrânia, chegando mesmo à fronteira do país vizinho. No entanto, esta reconquista ucraniana por não ter grande valor militar porque as forças russas, segundo alguns analistas, só permaneciam na cidade como forma de fixar forças ucranianas mantendo-as afastadas do foco principal da guerra, que é a região do Donbass.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar paara a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas der fora o sector energético, gás natural e petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 4,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.