Desde logo os dois objectivos prioritários, que eram libertar reféns e exterminar o Hamas, nem de perto nem de longe foram conseguidos com a violência das armas: foram as tréguas que o permitiram, pelo menos um deles, a libertação de dezenas de israelitas nas mãos do movimento palestiniano.
No calendário é tudo mais simples... passam nesta quarta-feira, 29 de Novembro, 53 dias desde o audacioso e trágico assalto de 07 de Outubro ao sul de Israel pelos combatentes do Hamas, e em Telavive, além da destruição de milhares de edifícios civis, o Governo israelita pouco mais tem para mostrar.
Factos: no dia 07 de Outubro, em menos de 24 horas, morreram 1200 em Israel e 2 mil ficaram feridos, quase todos nacionais mas também alguns estrangeiros, antes de o Governo de Telavive ter lançado, no dia seguinte, uma devastadora operação militar sobre a Faixa de Gaza.
A máquina de guerra de Israel já tem na folha de resultados 14 mil mortos e 40 mil feridos, em Gaza, quase todos civis palestinianos, o que não deixa dúvidas de que a punição israelita foi mais sentida sobre o povo daquele território que nos "terroristas".
E sem beliscar de morte este movimento, que continua politicamente intacto e a ganhar corpo no mundo islâmico e simpatia para a causa palestina no ocidente devido à mortandade gerada por Israel, desde logo porque entre os mais de 14 mil civis palestinianos mortos, estão cerca de seis mil crianças e 60 por cento dos restantes são mulheres e idosos.
Benjamin Netanyhau, o primeiro-ministro israelita que aproveitou o 07 de Outubro para se transformar num cabo-de-guerra sem piedade para fazer esquecer os sérios problemas que o colocavam entre a espada e a parede na sociedade israelita, acusado de corrupção e peculato, prometeu colocar no topo das prioridades da gigantesca máquina de combate montada pelas Forças de Defesa de Israel (IDF) para lançar um assalto sobre Gaza, a libertação dos reféns e extinguir o Hamas.
Depois de quase seis semanas de devastadores bombardeamentos sobre Gaza, um território de 365 kms2, com uma das maiores densidades populacionais do mundo, mais de 6500 habitantes por km2, e uma invasão terrestre que acabou com o que restava em pé no norte desta faixa de terra que muitos consideram a maior prisão a céu aberto do mundo, Netanyahu e o seu ministro da Defesa, Yoav Gallant, um falcão de guerra cuja ferocidade já é lendária, não conseguiram nenhum dos objectivos prioritários a que se tinham proposto.
Nem libertaram nenhum dos 240 reféns levados pelos combatentes das Brigadas Al Qassam, o braço-armado do Hamas, para Gaza, nem aniquilaram este movimento palestiniano que Governa o território deste 2007, após ganhar eleições, tendo, depois extinguido as bases da democracia que lhe permitiram aceder ao poder.
Curiosamente, foi a paz, mesmo que uma paz delimitada e circunstancial, como são todos os cessar-fogo antes de um acordo de paz ser assinado entre as partes beligerantes, que deram a Netanyhau e Gallant um vislumbre de sucesso num dos objectivos com que se comprometeram: fazer reféns regressar a casa.
Porque no que toca a destruir o Hamas, apesar muitos dos seus, segundo algumas fontes, 40 mil combatentes terem sido mortos, nem a sua estrutura dirigente foi afectada de forma significativa, até porque esta está fora do território, principalmente no Qatar, e depois porque a rede de túneis e linhas de fuga entre o norte e o sul de Gaza, preparados com anos de antecedência, mostraram-se à altura do desafio colocado pelo avanço das forças terrestres israelitas.
Com o cessar-fogo conseguido pelo Qatar, país que liderou as conversações de paz, mediando os contactos, nos últimos cinco dias foram libertados perto de três dezenas de reféns israelitas pelo Hamas enquanto das prisões israelitas foram, por troca, libertadas perto de 120 palestinianos que ali estavam, na maioria, mulheres e jovens, detidos quando eram ainda crianças, sem julgamento ou sequer acusação formada, ou seja, nem sequer sabem porque estão presos, o que faz destas pessoas mais reféns do que prisioneiros, apesar da falaciosa terminologia usada comummente pelos media ocidentais.
A diplomacia do Qatar, mas também dos EUA, dos países da região, com o apoio da Rússia, da China e da União Europeia, está agora a tentar prolongar as tréguas, que são alimentadas pela libertação de detidos de um e do outro lado.
Detidos libertados, vidas poupadas
Mais importante que a libertação de detidos de um lado e do outro, estão as contas sobre quantas vidas foram poupadas, ou quantas pessoas deixaram de ser levadas para hospitais semidestruídos pelas IDF em Gaza, com este cessar-fogo?
A resposta é difícil e só pode ser dada com base no registo dos dias anteriores, onde a cada 24 horas estavam a ser mortas dezenas de civis e centenas entravam nos hospitais sem condições, muitos deles condenados previamente pela destruição parcial destas unidades de saúde, o que facilmente algumas organizações humanitárias no terreno, ligadas ou à ONU ou ao Crescente Vermelho, a Cruz Vermelha no universo islâmico, sublinham que mais de mil vidas podem ter sido salvas nestes dias de tréguas entre Israel e o Hamas.
Apesar desta, como considerou o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, "luz ténue de esperança na escuridão da guerra", ainda é muito pouco para "fazer chegar a Gaza o mínimo de dignidade" na forma de apoio em alimentos, medicamentos, água, combustível para fazer funcionar os hospitais e os centros de apoio humanitário...
Mas é igualmente necessário, como sublinham várias organizações, garantir que a situação no terreno não evolui para aquilo que muitos temem que possa ser o lado mais dramático desta guerra, a morte menos ruidosa gerada pelo descontrolo de doenças infeciosas e diarreicas que têm caminho aberto pela falta de água potável, pela subnutrição e falta de funcionamento mínimo de serviços de limpeza pública, com lixo a amontoar-se...
A Organização Mundial de Saúde (OMS) coloca mesmo as coisas num dramatismo que até aqui estava mascarado pela intensidade dos combates, afirmando a sua porta-voz, Margaret Harris, citada pela Al Jazeera, que se nada for feito, "veremos mais pessoas a morrer de doenças que nos bombardeamentos".
Para evitar este cenário, que, na verdade, não é novo, porque assim sucedeu nos diversos conflitos pelo mundo, desde logo no do Iémen ou na Etiópia, aponta ainda Margaret Harris, "é urgente permitir a reconstrução do sistema de saúde" que praticamente colapsou sob os bombardeamentos israelitas.
Como é disso melhor exemplo está o desmoronamento do Hospital Al Shifa, o maior e melhor equipado dos cerca de 40 existentes em Gaza (apenas três se mantém funcionais), que as IDF invadiram sob a justificação, que nunca conseguiram demonstrar, de que no seu subsolo estavam túneis usados pelos combatentes palestinianos. Posteriormente veio-se a demonstrar que esses túneis foram construídos por Israel na década de 1980 e ali não foram encontrados indícios robustos de uso pelos "terroristas".
A diplomacia dos EUA volta ao terreno...
... para garantir, segundo a Casa Branca, que as tréguas possam evoluir para algo mais sólido, nomeadamente tirar da ideia do Governo de Benjamin Netanyahu de forçar novas deslocações em passa da população de Gaza ou manter a ocupação indefinidamente no tempo no território, como, por exemplo, Yoav Gallant, já disse publicamente que seria feito.
A nova visita, a terceira desde 07 de Outubro, do secretário de Estado dos EUA, equivalente a ministro das Relações Exteriores, Antony Blinken, ao Médio Oriente, tendo chegado a Telavive na terça-feira, com deslocações previstas ainda à Jordânia e aos Emirados Árabes Unidos, para um último esforço diplomático que permita não só prolongar as tréguas em Gaza mas também gerar entendimentos alargados para o "day after" deste conflito.
Entendimento esse que, embora sem isso estar a ser dito publica e oficialmente pelos principais países da região, terá de passar por uma saída do tabuleiro de jogo do Hamas, mas também por uma garantia sólida de Israel de que saíra de Gaza depois de cumpridas algumas condições que estão a ser negociadas.
Uma das questões que pode criar ruído neste processo é a presença de uma imponente força naval norte-americana no Mediterrâneo Oriental, com dois porta-aviões e dezenas de navios de apoio, além de submarinos nucleares, que o Irão, uma das três grandes potências militares do Médio Oriente, além de Israel e Arábia Saudita, já veio dizer que é "um elemento perturbador" na amenização da situação na região porque tem como objectivo fornecer a Israel a garantia de impunidade.
Numa altura em que crescem as acusações de crimes de guerra contra Telavive, estando este tipo de críticas severas ao Governo de Netanyahu a partir não só de países muçulmanos, como a Turquia e o Irão, Iraque ou do norte de África, mas também de países europeus, o que cria um desconforto especial em Telavive e gera em Washington uma necessidade urgente de não deixar alastrar esta "infecção" porque se Israel é o seu maior aliado no Médio Oriente, a Turquia é o segundo maior exército da NATO e na Europa está o grosso dos seus aliados ocidentais.
Por outro lado, como sublinham diversos analistas citados na imprensa internacional, se depois deste cessar-fogo, que deverá ser alargado por vários dias, aumentando o número de detidos libertados de um lado e do outro - num rácio de um israelita por três palestinianos -, as hostilidades regressarem ao "normal" destas quase sete semanas, então isso será uma derrota diplomática para os EUA, para a ONU e para as potências regionais empenhadas no fim dos combates.
Mas também uma demonstração de impunidade de Israel, que conta com um acesso ilimitado ao arsenal mais moderno dos Estados Unidos, conta ainda com a força naval norte-americana no Mediterrâneo Oriental, que ali está para travar quaisquer ímpetos iranianos de atacar o seu aliado regional mais relevante e que conta com o mais poderoso "lobby" no Congresso em Washington.
E esse cenário não está posto de parte porque Benjamin Netanyahu sabe, como o próprio já disse, que terá de prestar contas sobre nos processo na justiça, onde surge acusado de graves crimes de corrupção, terá de enfrentar um fervor gigantesco nas ruas contra a sua reforma da Justiça, e ainda face à estranha, e ainda por explicar, negligência dos vários departamentos de "intelligentsia" israelitas, como a Mossad, o Shin Bet ou os militares da AMAN, que não conseguiram nem prever nem detectar a chegada da vaga de assalto dos combatentes do Hamas ao sul de Israel a 07 de Outubro, trespassando, seguramente, embora, agora, alegadamente, a mais bem vigiada fronteira do mundo...
Esta facilidade com que as forças das Brigadas Al Qassam e da Jihad Islâmica entraram no sul de Israel e avançaram até algumas cidades de média dimensão sem ser detectadas, gerou, de imediato, suspeitas de conivência interna no seio do Governo de Netanyahu e Gallant, que foram escondidas pelo evoluir da guerra mas que ambos os governantes israelitas sabem que vão voltar em força no já esperado efeito boomerang, assim que os combates cessarem em definitivo, estando, quando esse momento chegar, obrigados e explicar que não era do seu interesse esta guerra e nada fizeram para a permitir e justificar.