É um facto, o Presidente da Turquia ameaçou invadir Israel para travar a mortandade em Gaza, mas é também um detalhe muito relevante que ninguém perceba muito bem as intenções de Recep Erdogan, sendo que o mais provável, segundo vários analistas, que o líder turco queira apenas disputar o palco regional com o Irão e Israel, sendo, como é, um gigante militar regional que não está a merecer a atenção global que entende merecer.
Perante este puzzle, que ainda não é claro qual a imagem que saíra depois das peças estarem colocadas no seu devido lugar, até a questão mais substantiva, que é a ameaça de Israel lançar uma operação de larga escala contra o Hezbollah depois do ataque mortal com um roquete na zona dos Montes Golã ocupada por Israel, está a passar para segundo plano.
Porque se uma ofensiva israelita sobre o Hezbollah no sul do Líbano, como parece estar iminente e ser já uma questão de quando e não se..., seria avançar para um novo patamar de gravidade na explosiva situação na região, a ameaça de Recep Erdogan de invadir Israel seria passar não de nível num jogo de contornos perigosos mas sim mudar totalmente de contexto, para algo inimaginável e catastrófico, nunca visto.
Isto, porque, se a Turquia é o país com as mais poderosas forças armadas convencionais da NATO, uma organização ocidental liderada pelos Estados Unidos, Israel é, sem margem para dúvidas, o mais sólido aliado de Washington no Médio Oriente e sem paralelo no grau de lealdade mútua em todo o mundo.
Os analistas ouvidos pelos media internacionais, numa boa parte, convergem na ideia de que as palavras de Erdogan não podem nem devem ser lidas literalmente, porque tal cenário configuraria a possibilidade de uma convulsão político-militar na região euroasiática que não está sequer colocada como remota hipótese nas mais elaboradas análises...
Ora, então que quer Recep Tayyp Erdogan?
O mais provável é que o Presidente turco não estivesse satisfeito com o facto de uma das maiores potências militares do mundo, a maior da NATO excluindo os Estados Unidos, não estar a ser vista como um player fundamental no complexo xadrez do Médio Oriente.
E, apesar das palavras de extrema dureza atirada por Erdogan contra o Governo israelita no contexto da guerra em Gaza, onde já foram mortas mais de 40 mil pessoas, das quais 20 mil crianças, chamando mesmo "genocida" ao primeiro-ministro Benjamin Netanyhau, a Turquia tem sido mantida fora do circulo de actores regionais de primeira linha.
Para inverter este quadro, e chamar as atenções para o papel de Ancara que Erdogan entende ser devido, a ameaça de invasão a Israel, de tal modo absurda e inusitada, garante essa atenção imediata, mas, porém, o facto de ser tão estranha, leva a que não estivesse a ser levada a sério.
Até agora, porque depois da ameaça de Erdogan, em Telavive, Israel Katz, o ministro dos Negócios Estrangeiros, veio lançar achas para a fogueira exigindo a expulsão da Turquia da NATO, a aliança militar liderada pelos EUA da qual apenas a Turquia tem extensão euroasiática e um pé dentro da fornalha que é o Médio Oriente.
Recorde-se que em pano de fundo mantém-se a já anunciada operação militar israelita contra o Hezbollah, que está em cima da mesa há meses e foi agora reforçada após o ataque este fim de semana com um roquete, que o Hezbollah nega a autoria, sobre um campo desportivo onde morreram 123 crianças e jovens drusos, nos Montes Golã, habitada maioritariamente por esta etnia.
O que leva alguns analistas a admitirem que Recep Erdogan, com a ameaça a Israel, poderá estar a manipular os dados israelitas que, se dificilmente poderão aguentar uma segunda frente de guerra na fronteira israelo-libanesa, uma terceira, com a Turquia seria impossível.
E, mesmo sendo quase hilariante tal ameaça de Erdogan, a verdade é que o comando militar israelita não pode ignorá-la por completo, o que exige, se não abdicar, pelo menos repensar o avanço sobre as posições do Hezbollah, que, como se sabe, é o mesmo que abrir a porta à entrada do Irão neste já de si inextrincável xadrez.
Enquanto isso, o Governo em Israel já ordenou à sua rede diplomática que abrange os países da NATO, essencialmente a América do Norte (EUA e Canadá) e a Europa Ocidental, para iniciar contactos com os governos-membros da organização militar no sentido de os levar a condenar a Turquia e fundamentar as razões para a sua expulsão.
O apelo dos BRICS
Ora, este momento tem ainda outro envolvimento, porque, dentro dos países da NATO, a Turquia é, de longe, o que mais relevantes relações tem com a Rússia, havendo mesmo analistas que admitem estar em curso uma caminhada de Ancara para os BRICS, a organização global que integra, inicialmente, a Rússia, China, Índia, Brasil, África do Sul, e, desde o inicio deste ano, mais seis membros, incluindo a Arábia Saudita e o Egipto, países fundamenais na geografia de interesses turca.
Ao que acrescenta o facto de muitos analistas estarem há largos meses a falar num aproximar estratégico da Turquia aos BRICS, que ficou claro quando Ancara optou, em 2019, por comprar os sistemas antiaéreos russos S-400 e ter escolhido a Rússia como parceira tecnológica para construir uma gigantesca central nuclear no país.
Numa altura em que cresce a desconfiança mútua entre a Turquia e o Ocidente, é ainda visto como possível nalguns círculos que a ameaça de Erdogan a Israel seja a antecâmara de um deslaçamento turco da NATO, provocando um atrito público de forma a facilitar a roca de campo de Ancara.
Mas pode igualmente tudo não passar de uma manobra ardilosa de Recep Erdogan para ganhar posição mais relevante, dentro da NATO, na sua já existente condição de mediador entre o ocidente e o oriente, no que, efectivamente, corresponde já à sua geografia física, sendo um país com um braço na Europa ocidental (Grécia e Bulgária) e o corpo estendido pela EuroÁsia, raiando as fronteiras do Irão, Iraque, Síria, Geórgia, Arménia... e Rússia.
Depois de ao longo dos últimos 30 anos, a Turquia ter visto a sua adesão à União Europeia sistematicamente fechada, a ponto de hoje não ser sequer um objectivo, economicamente é do interesse turco uma aproximação aos BRICS, cujo PIB já ultrapassou o do G7, que inclui as grandes economias ocidentais + Japão.
O grande imbróglio seria se a ameaça de Erdogan sobre Israel não ser parte de uma rebuscada estratégia para ganhos noutros palcos e ser isso mesmo, uma ameaça séria de invasão.