O primeiro indício de que o acordo conseguido por Amos Hochstein, o enviado especial do Presidente norte-americano, Joe Biden, para o Líbano e Israel, é uma farsa é a sua duração, 60 dias, precisamente o tempo que resta à actual Administração democrata em Washington.

O fim deste prazo de tréguas no conflito entre as Forças de Defesa de Israel (IDF) e os combatentes do Hezbollah, no sul do Líbano, vai coincidir com a chegada de Donald Trump à Casa Branca, com a tomada de posse prevista para 20 de Janeiro.

Se a cessação das hostilidades se mantiver, mesmo que algumas escaramuças, o que é quase inevitável nestas circunstâncias, ocorrerem, findo esse prazo, como alguns analistas começam a dar quase como certo, Israel vai voltar à carga com força redobrada e as suas forças recuperadas.

O descanso dos guerreiros

Mas é este período apenas um intervalo para descanso dos guerreiros? Provavelmente sim, e provavelmente ambos os lados da barricada estão disso cientes e era isso que procuravam.

Por um lado, dificilmente Israel vai perder a oportunidade de contar com o apoio ilimitado dos EUA, com a chegada de Trump ao poder, para tentar aniquilar o Hezbollah, que é o braço melhor armado do Irão no Médio Oriente.

E do lado do Hezbollah, estes quase quatro meses de combates no sul do Líbano, que se intensificaram fortemente em Agosto, quando as IDF invadiram o país vizinho, o "descanso" também é bem-vindo para que os seus combatentes recuperem forças.

O Hezbollah estará, neste momento, ainda mais necessitado de se reorganizar e dar descanso às suas unidades fortemente fustigadas pelos incessantes bombardeamentos da força aérea e artilharia israelita, além dos golpes que foram a morte de vários dos seus líderes, especialmente o histórico Hassan Nasrallah, assassinado pelos israelitas a 27 de Setembro.

Apesar da descrença de que este cessar-fogo é para valer, Joe Biden, em Washington, após a assinatura do documento, que pode ser, se correr bem, a melhor saída de cena possível para os penosos quatro anos do seu mandato, marcado por conflitos encarniçados na Ucrânia e no Médio Oriente, produziu declarações de efusiva esperança.

Cessar-fogo nem para enganar tolos serve

No terreno, poucos acreditam que seja mesmo para valer, como, de resto, foi verbalizado sem rebuço Gabby Neeman, o autarca de Shlomi, uma das mais importantes cidades da área de fronteira israelo-libanesa, garantindo que muitos dos habitantes que saírem não vão voltar.

O líder israelita local explicou que uma boa parte dos milhares de israelitas que deixaram a região devido ao conflito, muitas delas já há longos meses, ou mesmo anos, receiam que as tréguas se finem antes de a paz estar consolidada de forma minimamente segura.

Pior ainda, Neeman disse mesmo, após uma reunião com o primeiro-ministro Benjamin Netanyhau, a uma rádio israelita, citada pelo britânico The Guardian, que "o próximo `round" está mesmo à nossa frente", agora ou em alguns meses.

E não é, igualmente, segredo para ninguém, como não o é para as chefias do Hezbollah, ou para os atentos iranianos ao que decorre deste acordo entre o seu grande inimigo e os seus aliados no Líbano, que assim que chegar ao poder, Donald Trump vai ligar para Netanyhau dizendo-lhe que pode retomar as hostilidades porque conta com apoio total dos EUA.

Trump não negoceia com "terroristas"

Como sublinhava esta manhã nos ecrãs da CNN Portugal, o analista Tiago André Lopes, toda a equipa conhecida de Trump, especialmente o seu secretário de Estado (ministro das Relações Exteriores), Marco Rubio, é ferozmente pró-israelita e defensora do apoio ilimitado a Telavive.

O analista português fez ainda nota da indisponibilidade histórica de Trump, que já passou pela Casa Branca entre 2017 e 2021, para negociar com "terroristas", o que permite perceber que este acordo, antes de ser assinado, foi conversado pelo primeiro-ministro israelita com o Presidente-eleito norte-americano.

Mas não apenas com Trump... Benjamin Netanyhau teve de conversar igualmente com os seus colegas de Governo mais radicais, como Bezalel Smotrich, ministro das Finanças, e Itamar Bem Gvir, que tutela a Segurança Nacional, que já afirmaram, em distintas e repetidas ocasiões, que se o primeiro-ministro negociasse o fim dos combates com o Hezbollah, fariam cair o Governo demitindo-se.

E Netanyhau não correria o risco de ver o seu Governo desmoronar-se avançando para um cessar-fogo sem antes ter garantido a Smotrich e Bem Gvir que se trata de um intervalo estratégico na guerra de aniquilação do Hezbollah, como tem dito repetidamente.

Netanyhau precisa da guerra como barreira contra os ajustes de contas

Isso, porque no dia em que Netanyhau deixar o poder, terá à perna a justiça israelita, onde a guerra o "apanhou" no banco dos réus por graves suspeitas de corrupção e branqueamento de capitais...

... e, provavelmente ainda mais perigoso para ele, enfrentar as suspeitas que existem (ver aqui) de conluio com as secretas israelitas para permitir o ataque do Hamas ao sul de Israel a 07 de Outubro do ano passado, que foi o que despoletou a invasão de Gaza e, depois, do sul do Líbano, permitindo-lhe manter-se à frente do Governo quando enfrentava as mais vigorosas e persistentes manifestações de rua de sempre na história de Israel.

Admitindo que este cessar-fogo é, efectivamente, um mero intervalo estratégico para que as hostilidades sejam retomadas com redobrada intensidade, é igualmente verdade que ele serve a todos.

Às IDF e ao Hezbollah, serve para o descanso dos guerreiros e a reposição dos stocks de armamento, bastante desgastados por longos meses de atrito, a Netanyhau, serve para contentar o Presidente Joe Biden, sem comprometer os planos de Donald Trump, enquanto aligeira a pressão regional sobre si feita pela Turquia, Egipto...

A Joe Biden serve para poder dizer que saiu de cena com a paz garantida naquela região do mundo e que se ocorrer o seu reatamento, isso será já no turno de Donald Trump, e para o próximo inquilino da Casa Branca, este acordo serve para reforçar a sua posição de não negociar com "terroristas" e de agradar ao poderoso lobby judeu nos corredores da política e da economia norte-americanas.

Biden entala Trump

Só que Trump pode não estar a contar com o que está escrito nos astros, que é, sabendo o Irão que o próximo Presidente dos EUA é o seu maior inimigo, e que tudo fará para criar as condições para justificar o envolvimento dos norte-americanos, ao lado de Israel, numa guerra com os iranianos, Teerão poderá criar-lhe dificuldades obrigando Telavive a cumprir o acordo na totalidade.

O que não seria nada de novo, porque, mesmo que Israel procure rasgar o acordo de cessar-fogo com a chegada de Trump à Casa Branca, a 20 de Janeiro, com ataques injustificados sobre as posições do Hezbollah, a resposta pode ser a contenção estratégica.

Isso mesmo foi e está a ser praticado pelo Irão, que optou por não responder aos ataques com misseis e drones israelitas sobre o seu território, deixando Telavive e o primeiro-ministro Benjamin Netanyhau com o ónus da última agressão.

E se o Hezbollah e o Irão não reagirem às esperadas provocações de Israel, Trump pode ter que engolir o sapo que lhe foi servido em bandeja de prata por Joe Biden mesmo antes de sair de cena.

Que não é muito diferente do que está a fazer na Ucrânia, mas em sentido contrário, porque o Presidente-eleito tem repetido, na campanha e já depois das eleições de 05 de Novembro, que quer acabar com a guerra entre russos e ucranianos...

... e Joe Biden tem estado a garantir que dificilmente Trump poderá colocar um ponto final no conflito no leste europeu se quando este chegar à Casa Branca a guerra estiver em fase de escalar e não de arrefecer.

Isso mesmo está a ser conseguido depois de, de forma surpreendente, Biden ter autorizado (ver links em baixo nesta página) a Ucrânia a usar os seus misseis ATACMS na profundidade do território russo fora da geografia em disputa com a guerra.

O que levou Moscovo a trazer para o palco do conflito uma arma que ainda ninguém foi capaz de explicar com precisão o que é mas cujo poder destrutivo tem gerado estupefacção entre os aliados ocidentais de Kiev, o Oreshnik, um míssil balístico de alcance intermédio hipersónico que carrega múltiplas ogivas convencionais e com manobrabilidade e para o qual não existe defesa possível com os actuais sistemas de defesa antiaérea, mesmo os mais modernos e sofisticados.

Com este cenário pela frente, vai ser preciso um Trump com poderes mágicos para conseguir acabar com a guerra rapidamente, como tem prometido repetidamente, usando mesmo a imagem simbólica das "24 horas" para o conseguir. E se não conseguir, é Biden que ficará a rir-se.