A petrolífera francesa alegou uma razão de "force majeure", jargão que no sector significa que a empresa deixou de ter condições para operar, o que lhe permite manter tudo em suspenso, incluindo compromissos assumidos, de forma a pressionar o Governo do Presidente Filipe Nyusi para limpar a província de Cabo Delgado dos grupos jihadistas que já mataram pelo menos 2.600 pessoas e obrigaram mais de um milhão a deixar as suas aldeias e vilas.

O último episódio teve lugar em Palma, a vila mais a norte do país, já próximo da Tanzânia, de onde chegam os comandantes do al-shaabab, como se denominam os radicais que ali operam, embora esteja ainda por concluir se existe uma ligação à al-shaabab que há anos espalha o terror no Sahel e no Corno de África.

No ataque a Palma, a partir do qual se desenrolou a sucessão de acontecimentos que levou a esta decisão radical da Total, e também num contexto em que alguns organismos locais e internacionais questionam o papel da petrolífera neste contexto e a uma eventual ligação "silenciosa" aos grupos armados, com eventuais pagamentos através de empresas de segurança que mantinham centenas de mercenários no local para proteger o investimento.

Com esta posição de força da Total, que segundo alguns media, levou o Presidente moçambicano a agendar uma deslocação a Paris para conversações com a empresa, o que pode estar a ser desenhado é uma forma de levar Nyusi a aceitar, por fim, a intervenção de forças militares de países amigos para apoiar o Exército moçambicano a lidar com os insurgentes, apesar de Maputo já ter aceitado a colaboração na área da formação por parte de Portugal e EUA.

Este projecto LNG da Total, em Afungi, Cabo Delgado, que é um dos maiores em todo o continente africano neste sector do gás natural liquefeito, o Governo moçambicano deposita a sua esperança para ultrapassar a forte crise económica em que está envolvido.

Certo, para já, é que a empresa retirou todo o seu pessoal de Afungi e deixou em stand by as operações, atirando assim a responsabilidade de resolver o problema da segurança para o Governo moçambicano.

O Presidente, que se prepara para ir a França, terá de levar na bagagem a garantia de que tem como limpar a região dos grupos radicais e garantir a segurança em toda a área envolvente do projecto, que pode transformar toda a economia moçambicana.

Contexto

O terror por que passam milhões de pessoas na província moçambicana de Cabo Delgado, norte do país, junto à fronteira com a Tanzânia, esteve adormecido durante anos, mas, agora, nas últimas semanas, o aumento da brutalidade sobre crianças e mulheres, e, com maior ênfase, o assalto à vila de Palma, tiveram como consequência imediata a saída da obscuridade deste conflito que já fez milhares de mortos e um milhão de deslocados.

Cabo Delgado, área geográfica rica em gás natural e pedras preciosas, voltou às páginas e ecrãs do mundo inteiro depois de se saber que crianças e mulheres estavam a ser decapitadas por radicais ligados ao `estado islâmico" e chegou aos destaques dos principais noticiários das grandes cadeias de televisão depois de uma ousada iniciativa militar dos radicais que tomaram de assalto uma localidade estratégica, Palma, com 40 mil habitantes, no extremo norte da província do país.

Este conflito já ceifou a vida a mais de 2.600 pessoas desde que em 2017 se começaram a ouvir as primeiras notícias, ainda sob a forma de rumores, de que grupos de barbudos, com ligações ao jihadismo internacional, estavam a amedrontar as populações que viviam nalgumas áreas de Cabo Delgado.

Coincidentemente, nestas áreas estavam a ter início as preparações para a exploração de gás natural pela gigante francesa Total, os rubis estavam a ofuscar os olhos dos traficantes e o negócio internacional de drogas pesadas assentava campo nestas latitudes.

O silêncio que ensurdecia

Depois de longos meses de um silêncio ensurdecedor nos media internacionais, com raras excepções, como os portugueses Lusa e RTP, sobre este conflito esquecido mas de vertigem sanguínea sentida pelas massacradas populações, eis que a Save the Children, uma conhecida ONG internacional, divulga um relatório sobre as monstruosidades cometidas pelos radicais afectos ao al-shabbab - estado islâmico (isis) -, sublinhando as decapitações de jovens rapazes e mulheres que se recusavam a juntar-se à sua "causa".

Primeiro nos rodapés das cadeias internacionais de TV e nas páginas secundárias dos maiores jornais do planeta, depois, quando o mundo foi surpreendido - mais uma vez - pela tomada militar de Palma pelos radicais, com os seus 40 mil habitantes - cerca de 10 mil conseguiram fugir para as matas - e centenas de estrangeiros ligados ao projecto de exploração de gás da Total, alguns dos quais mortos nos combates e nos ataques a caravanas de viaturas com gente em busca de refúgio fora da localidade, o assunto passou a ser destaque em todo o mundo.

Desde logo, a reacção dos Estados Unidos, que, através do porta-voz do Pentagono, John Kirby, veio reafirmar o empenho no apoio ao Governo do Presidente Filipe Nyusi, ou da União Europeia, com Portugal, que preside aos 27, a assumir que, tal como os EUA, vai, a pedido de Maputo, enviar instrutores militares para formar tropas especiais das Forças Armadas moçambicanas no combate ao terrorismo.

Também a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) analisou, em finais de 2020, este problema, prometendo solidariedade, mas, como tem sido comum, pouco ou nada sucedeu desde então por parte da comunidade lusófona, que tem, actualmente, Angola a presidi-la

Entretanto, o Governo de Maputo fez saber que não aceita militares estrangeiros a combater os radicais no seu território, por questões de soberania.

Apenas permite que as tropas moçambicanas recebam instrução militar para o efeito, como avançou o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, que chefiou uma missão da União Europeia a Moçambique para abordar este assunto com o Governo de Nyusi.

O que conta quem mais sofre

Todavia, os relatos de pessoas que conseguiram fugir da localidade de Palma, apontam claramente para uma situação insustentável, o que levou a Total a enveredar pelo caminho mais seguro, que foi suspender o projecto e tirar os seus trabalhadores estrangeiros da linha de fogo.

Menos afortunados, os locais, milhares de pessoas, procuraram refúgio nas florestas densas da região e, depois, começaram a rumar a sul, com o objectivo de chegar a Pemba, onde estão concentradas as organizações internacionais que fornecem apoio alimentar e assistência médica.

No seu relatório de 29 de Março, o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários (UNOCHA) enfatiza a gravidade da situação no município de Palma, falando em mais de 110 mil pessoas a viverem, ainda, com medo nesta área.

Esta unidade da ONU refere ainda que é "muito difícil" obter informações exactas do que sucede na área atacada pelos grupos armados, sublinhando que foram criados pontos de recepção aos refugiados provenientes de Palma.

E nota que, além dos habitantes naturais de Palma, a vila contava ainda com milhares de pessoas que já tinham ido ali parar fugidas de outras localidades atacadas pelos jihadistas.

Recorde-se que os ataques dos radicais islâmicos coincidem no tempo e no espaço com o anúncio inicial da descoberta de estrondosas reservas de gás natural no offshore da província, sendo Palma o "alvo" conquistado pelo isis-al shabbab mais próximo do gigantesco projecto de exploração da matéria-prima.

Com esta acção militar, segundo alguns analistas, a continuação do projecto - que nem sequer começou ainda a produzir - pode estar comprometida, visto que os técnicos, estrangeiros, na generalidade, ou já deixaram a região ou estão em vias de o fazer, especialmente para Pemba, que dista perto de 300 km do local, direcção sul, sem que se saiba ainda se este projecto será retomado ou se a Total vai desistir dele considerando que o mundo vive agora uma rápida transição energética onde os hidrocarbonetos são cada vez menos apreciados.

Reacção do Governo

Entretanto, o ministro da Defesa moçambicano, citado pela AFP, garantiu que as Forças Armadas estão a "reforçar as suas posições e meios no terreno de forma a conter o avanço criminoso dos terroristas, repelir os seus ataques e repor a normalidade em toda a província de Cabo Delgado.

A maior parte das vítimas mortais destes ataques são habitantes locais sem ligações nem ao projecto da Total nem políticas, que apenas procuravam escapar dos ataques, tendo muitos, segundo a Human Rights Watch, sido abatidos a sangue-frio quando fugiam das suas casas que eram alvejadas sem qualquer motivo aparente.

Esta violência, difícil de explicar, tem como cenário uma região que, de repente, passou das mais pobres do país para uma das com maior potencial, seja porque surgiu o projecto de gás natural da Total, seja devido à descoberta de largas jazidas de rubis, seja porque a área foi colocada no mapa do tráfico de drogas internacional.

Mas a coincidência é apenas referida de forma tímida nalgumas análises ao fenómeno sem que exista uma abordagem oficial a essa evidência.

O que surge como facto é que a crescente presença dos radicais islâmicos na região, de forte maioria muçulmana, desde sempre, dificilmente poderia ter passado sem que o alarme fosse dado e analisado pelas autoridades moçambicanas.

No entanto, o que sucedeu foi que estes grupos puderam crescer e fortalecer posições entre as populações locais, com elevados índices de pobreza - a maior aliada do radicalismo -, das mais altas do país, sem qualquer oposição.