Tradicionalmente mais próximos do Ruanda que da RDC, os Estados Unidos surpreenderam por estes dias o continente com uma ousada opção geoestratégica de acusar directamente o Ruanda e o Governo do Presidente Paul Kagame de estarem a apoiar os rebeldes do M23 na desestabilização das províncias do leste da RDC.
Esta "jogada" norte-americana já está, porém, a ser pensada há alguns anos, como o demonstraram as visitas do secretário de Estado Antony Blinken a Kinshasa, oficialmente em busca de soluções para estabilizar a faiscante região dos Grandes Lagos, onde sobressaem duas realidades. entre outras.
Desde logo, as riquezas do subsolo do leste da RDC em minérios geoestratégicos raros, como o coltão, as "terras raras" e o cobalto, fundamentais para as novas indústrias de tecnologia 2.0 e que são globalmente disputadas pelas grandes potências, como a China, os EUA, a Rússia e os europeus; e a instabilidade militar e paramilitar, cujas raízes são, também, étnicas, como o demonstrou o genocídio de 1994, no Ruanda, entre Hutus e as suas vítimas, os Tutsis, mas essencialmente motivadas pela exploração ilegal dos recursos naturais congoleses.
Há muito que o Ruanda é acusado pelo Governo de Kinshasa do Presidente Félix Tshisekedi de estar por detrás da actividade guerrilheira na região, especialmente do M23, mas não só, com o objectivo de criar uma capa de instabilidade para explorar criminosamente o coltão e o cobalto congoleses nas províncias do Kivu Norte e Kivu Sul.
Apesar de sempre ter negado esta acusação, em 2022 ocorreu uma alteração à percepção da comunidade internacional depois de a ONU ter libertado um relatório elaborado por especialistas onde é exposto o papel preponderante das forças ruandesas no apoio logístico e em armamento aos guerrilheiros do M23, movimento que estava praticamente extinto desde 2012 e ressurgiu como um vulcão de morte e violência em 2019/20 na região de fronteira entre a RDC e ao Ruanda.
Desde então, os dois países travam uma guerra de baixa intensidade na linha de fronteira, com ataques e contra-ataques (como pode ser revisitado nos links em baixo nesta página), peteraões territoriais ilegais... que deixam a sub-região dos Grandes Lagos com os nervos à flor da pele, porque uma guerra entre ruandeses e congoleses tem um potencial de alastramento gigantesco devido às suas complexas e intrincadas ramificações étnicas e de interesses.
Luanda-Washington, a força motriz por detrás da mudanças no xadrez dos Grandes Lagos
Durante as várias cimeiras de Chefes de Estado e de nível ministerial organizadas, nos últimos anos, pelo Governo do Presidente João Lourenço, em Luanda, para procurar a fórmula que garanta a estabilidade regional nos Grandes Lagos, cuja Conferência (CIRGL) é liderada pelo Presidente angolano, a tensão entre o Presidente ruandês, Paul Kagame, que se recusou a estar presente em algumas delas, e o líder congolês, Félix Tshisekedi, foram sempre visíveis.
Menos exposta foi a tensão crescente entre João Lourenço e Paul Kagame, porque o Chefe de Estado angolano, na qualidade de intermediário da paz, assegurou que essa mesma tensão ficasse atrás do palco, invisível a olho nu, mas ela esteve sempre a pairar sobre estas cimeiras de alto nível pela simples razão de que João Lourenço tem um forte relação com o seu homólogo congolês, Félix Tshisekedi.
E agora isso ficou ainda mais saliente depois da mudança estratégica perpetrada por João Lourenço com a viragem diplomática em direcção a Washington e ao ocidente, exposta frontalmente em 2022 com a Cimeira EUA-África, em Washington, e depois com a redefinição bem ponderada, como a ela se referiu o Presidente angolano, da rosa-dos-ventos geoestratégica de Luanda para os Estados Unidos, fragilizando os tradicionais polos privilegiados com Pequim e Moscovo.
A par deste redesenho das prioridades de Luanda, também os EUA, num movimento que não pode ser desligado do primeiro, vieram agora evidenciar a sua nova aposta, acusando o Ruanda de apoiar o M23 nas suas acções criminosas no leste das RDC, exigindo que Kigali imponha o fim das hostilidades ao seu "braço" de guerrilha na região, especialmente nas geografias mais próximas de Goma (capital) e Sake, duas grandes cidades do Kivu Norte.
Ao mesmo tempo, naquilo que foi o maior "desmancha-prazeres" que alguma vez a diplomacia norte-americana disparou contra o Ruanda, um seu tradicional aliado na região, senão o até agora mais próximo, Washington exigiu que Kigali retire as suas unidades militares do Kivu Norte, o que o Governo de Kagame já veio dizer que tal não vai suceder porque estas, inclusive os sistemas de misseis antiaéreos, são essenciais para proteger o país da hostilidade congolesa.
Naturalmente que as recentes demonstrações do novo desenho do mapa das prioriades de Washington nesta sub-região africana não são deslocáveis da importância dos gigantescos recursos naturais das RDC, que, como se sabe, são uma das razões para o forte investimento, mais de cinco mil milhões USD, na construção de um novo e eficaz Corredor do Lobito, entre este porto do litoral angolano e a fronteira com a RDC, bem como a interligação com a Zâmbia, outro dos aliados dos americanos nesta extensa e estratégica geografia, e cujo objectivo é o agilizar do transporte dos minérios congoleses até ao Atlântico e daí para as economias ocidentais, Europa e América do Norte.
Posição dos EUA gera faíscas em Kigali
A reacção das autoridades ruandesas às exigências de Washington para a retirada do apoio de Kigali ao M23 e a saída das suas unidades militares da fronteira com a RDC não se fez esperar e, pela voz do ministro dos Negócios Estrangeiros, denunciou aquilo que considera uma intromissão no direito do Ruanda de autodefesa.
Vincent Biruta acusou ainda os EUA e as potências regionais, que, obviamente, inclui Angola, de estarem a fechar os olhos ao forte investimento da RDC no fortalecimento das suas forças armadas, que diz mesmo estar a ser "visivelmente dramática" pela ameaça que tal aposta representa para toda a vizinhança nos Grandes Lagos.
Uma das "armas" neste combate de acusações mais usadas por Kigali é o alegado apoio congolês à Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR), uma das mais antigas e violentas guerrilhas estacionadas no Congo e que surgiu no rescaldo do genocídio do Ruanda, em 1994 quando a maioria Hutu, de que é maioritariamente composta, chacinou mais de 800 mil tutsis, a etnia do Presidente Kagame.
Nesta reacção, Kigali vai ainda mais longe e questiona esta viragem de 180º nas opções político-diplomáticas dos EUA na sub-região, questionando, segundo as agências noticiosas, se se trata de uma alha na habilidade diplomática de Washington ou uma "momentânea falha de orientação interna", o que levaria os EUA a deixar de ter "crédito para se manter como um mediador credível" para a região dos Grandes Lagos.
É claro que em Kigali se está a par da mudança de agulha dos EUA na região, como o evidencia a aposta no Corredor do Lobito, que é uma ferramenta para ajudar Washington a reforçar a sua "amizade" com Kinshasa e, dessa forma, tentar ganhar terreno no fértil subsolo congolês onde as gigantescas empresas chinesas de mineração já estão há anos consolidadas, especialmente na extracção de coltão, cobalto e terras raras.
Com esta quebra de laços com o Ruanda, os EUA "tonificam" as suas ligações à RDC, com o apoio relevante de Angola neste redesenhar das prioridades em Washington, pelo menos com a actual Administração democrata de Joe Biden - a possível vitória eleitoral do republicano Donald Trump em Novembro deste ano pode deitar tudo por terra -, o que pode vir a ser uma das mais vistosas movimentações geoestratégicas dos Estados Unidos em África e para a qual Luanda foi nitidamente preponderante no contexto da batalha global pelo domínio da nova ordem mundial em disputa entre o Ocidente Alargado, liderado pelos norte-americanos, e o Sul Global, assente no eixo Pequim-Moscovo-Nova Deli.
Recorde-se que, actualmente, no leste congolês estão posicionados alguns milhares de militares angolanos (ver links em baixo nesta página), quenianos, ugandeses, tanzanianos , sul-africanos e do Botsuana, integrados no contingente de interposição para pacificar a região dos Kivu Norte e Sul, ameaçada pela guerrilha do M23, enviado pela SADC e pela Comunidade de Países da África Orental (EAC).