Nos Estados Unidos da América, o problema é de natureza legal, com os dois partidos que gerem o país há séculos, Democratas e Republicanos, quando se aproxima rapidamente a pré-campanha para as eleições de 2024, a não conseguirem um entendimento sobre o fluxo do apoio militar e financeiro à Ucrânia, o que está a criar um poderoso imbróglio ao Presidente democrata Joe Biden.
Na Europa Ocidental, a questão é política, porque o ciclo eleitoral nacional e do bloco europeu, neste final de ano e ao longo de 2024, ameaça mudar a agulha, como, de resto, é disso exemplo as eleições deste fim-de-semana na Eslováquia, que passa de mais convicto apoiante de Kiev a claro opositor a qualquer apoio em equipamento em armamento ao país de Volodymyr Zelensky.
Nos EUA, com republicanos, claramente menos receptivos a manter o apoio ilimitado a Kiev, a mandar na Câmara dos Representantes, e democratas, que defendem esse apoio "até onde for preciso", como tem repetido Joe Biden, a controlarem o Senado, em risco de não conseguirem o entendimento mínimo entre as duas câmaras do Congresso para manter o financiamento do Estado federal, a solução de compromisso encontrado deixou de fora a aprovação do pacote de 24 mil milhões USD para a Ucrânia que tinha sido proposto pela Casa Branca.
Ou seja, nos próximos 45 dias, pelo menos, os EUA não vão poder, por aprovação dos congressistas, aprovar novos pacotes de apoio a Kiev, mas há outros mecanismos que o permitem, como as autorizações que são privilégio do Presidente, e que Joe Biden já admitiu que pode a eles recorrer.
Mas na União Europeia, que tradicionalmente segue os passos do aliado norte-americano, também o apoio a Kiev começou a tremer, seja porque a fadiga das sociedades europeias é já um facto impossível de ignorar pelos Governos, que podem sofrer nas urnas as consequências de opções contrárias ao sentimento popular, como sucedeu na Eslováquia, com a vitória do partido Direcão Social-Democrata (Smer), do ex-primeiro-ministro Robert Fico, que é contra o apoio miliar a Kiev, face ao Governo de Ludovít Ódor, do partido liberal Eslováquia Progressista, que foi até aqui o mais acérrimo apoiante da Ucrânia na Europa, a par da Polónia.
Polónia, alias, que é outra dor de cabeça para Kiev, e para a própria política oficial da União Europeia, que, depois de uma reviravolta inesperada no apoio incondicional a Kiev, onde se destacavam, a par da Eslováquia e da República Checa, depois do Presidente Zelensky ter feito críticas severas aos polacos devido à proibição de importar cereais ucranianos.
O primeiro-ministro polaco Mateusz Morawiecki, um populista de extrema-direita, depois das criticas de Zelensky na Assembleia-Geral da ONU, no mês passado, veio a público desferir um ataque ruidoso a Kiev, acusando os ucranianos de se comportarem como um homem que se está a afogar e , na sua aflição, ameaça levar com ele quem o tenta ajudar para o fundo do mar...
Depois de uma ligeira atenuação dos danos provocados por este embate, Kiev e Varsóvia tentaram uma reaproximação, mas o Governo polaco já voltou a vir a público dizer que vai ser muito difícil retomar a normalidade com os ucranianos e que não vão mesmo ser enviadas armas modernas para o país vizinho.
A esta mudança na rosa-dos-ventos do apoio europeu à Ucrânia, com impacto a aumentar devido à crescente crise económica com génese no conflito, há ainda uma persistente crítica noutras paragens, como na República Checa, onde se multiplicam as manifestações de rua contra a guerra e contra o apoio à Ucrânia, na Áustria, onde o Governo de Viena defende as negociações antes do apoio militar, ou na Alemanha, o pilar mais relevante do esforço europeu no apoio a Kiev.
Em Berlim, o Governo de centro-esquerda do SPD, liderado pelo chanceler Olaf Scholz, está a ser relegado nas sondagens para a 3ª posição, atrás da CDU, de centro-direita, e dos nacionalistas radicais de extrema-direita, que não escondem a proximidade ideológica com o nazismo, da AfD, que têm, de forma robusta, vindo a ganhar alguns municípios alemães em eleições regionais limitadas localmente, para espanto da maior parte dos analistas mas de forma assustadora para a democracia germânica.
Face a este desastre para a Ucrânia que se desenrola à vista de todos, a Comissão Europeia organizou uma reunião ministerial dos Negócios Estrangeiros, extraordinária, em Kiev, nesta segunda-feira, onde estiveram 23 dos 27 chefes das diplomacias dos países-membros, além de Josep Borrell, o comissário europeu que responde pela diplomacia do colectivo europeu.
Mas também aqui as coisas não correram bem para Kiev, porque os europeus não conseguiram pôr-se de acordo na disponibilização de mais um pacote de cinco mil milhões de euros para o esforço de guerra ucraniano, embora Borrell tenha renovado as juras de apoio eterno a Kiev, nas quais são cada vez menos aqueles que acreditam que isso se possa prolongar por muito mais tempo face às divergências internas que crescem a esse respeito.
Ficou ainda claro que se os EUA arrefecerem o apoio a Kiev, dificilmente os europeus poderão mantê-lo, porque a dependência europeia das decisões em Washington, que é conhecida, como ficou clara no exemplo do envio dos carros de combate alemães Leopard 2, que só viram luz verde depois dos americanos terem libertados os seus M1 Abrams, apesar destes ainda não terem sequer chegado ao campo de batalha e os alemães já terem visto serem destruídos dezenas dos que foram enviados.
Alias, o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmitri Kuleba, durante a reunião dos europeus em Kiev, se ter multiplicado em garantias públicas de que o apoio dos EUA à Ucrânia não está em risco e que vai continuar nos próximos anos, se for preciso, embora essa promessa seja irrealista, até porque as eleições norte-americanas são em Novembro de 2024 e as sondagens são cada vez mais favoráveis a uma vitória republicana, se o candidato for o ex-Presidente Donald Trump - que já disse que se regressar ao poder acaba com o apoio militar a paises estrangeiros, numa mensagem clara para Kiev -, face aos democratas, pelos quais Joe Biden já disse que vai tentar a reeleição.
Neste cenário de degradação evidente do apoio ocidental à Ucrânia, que vários analistas ocidentais dizem ser fruto da "propaganda russa", segue no terreno a guerra, com a contra-ofensiva ucraniana, que já leva mais de três meses, sem resultados substanciais, apesar de terem sido empregues milhares de "tanques", peças de artilharia e carros de transporte de infantaria modernos e fornecidos pelos aliados ocidentais, além dos quase 70 mil militares ucranianos formados nos países da NATO durante meses antes de 04 de Junho, quando começou a contra-ofensiva.
Apesar desta situação trepidante na frente de guerra, Kiev mantém como segura a decisão de não negociar com Moscovo antes da saída de todos os militares russos dos territórios ocupados na Ucrânia, incluindo a Crimeia, apostando numa vitória militar sobre a Federação Russa.
Na capital russa, ao mesmo tempo que mostra abertura para negociar, nos seus termos, que são a cedência territorial da Ucrânia, o Presidente russo, Vladimir Putin, continua a apostar na continuidade da guerra, esperado, como afirmam vários analistas, que a fadiga do conflito no ocidente e a ausência de avanços no terreno, levem Kiev a colapsar na sua convicção, contribuindo ainda para isso as centenas de milhares de mortos que se acumulam ainda mais à medida que o tempo passa.
Com o aproximar o tempo frio do Inverno no Hemisfério Norte, é natural que a guerra passe das trincheiras, para já quase inamovíveis, para os ataques de artilharia de longo alcance, e misseis, além dos sempre presentes drones, com os russos a apostarem na saturação, como sucedeu no ano passado, das populações destruindo as linhas de abastecimento de electricidade e os depósitos de combustíveis.
Do lado ucraniano, além dos misseis de médio alcance ingleses e franceses, storm shadow e scalp EG, Zelensky tem pedido mais misseis deste tipo e dos taurus alemães, ainda de maior alcance, de forma a poder fustigar territórios russos de mais longa distância, ou os aviões de guerra norte-americanos F16, além das baterias antiaéreas de forma a poder defender as suas cidades dos ataques russos com maior eficácia.
Sobre esses pedidos, as notícias podem não ser más para Zelensky, porque numa recente reacção a esta turbulência, a porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, veio dizer aos jornalistas que o apoio a Kiev vai continuar.
Não concordou com os jornalistas que lhe perguntaram se o apoio ocidental a Kiev estava a desfalecer, reafirmando a solidez da "aliança internacional" de apoio à Ucrânia, ao mesmo tempo que lançava um aviso ao Kremlin: "Se Putin pensa que nos pode fragilizar, está enganado!".
E aproveitou para anunciar um novo pacote de ajuda norte-americana a Kiev "para breve" sem se comprometer com uma data.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.