Há muito que esta guerra na Ucrânia, que já dura há quase dois anos e meio e ceifou centenas de milhares de vidas, é vista em Moscovo como sendo a NATO/EUA a combater a Rússia através dos ucranianos.
Em Washington e nas capitais europeias dos países da NATO, a retórica é outra e assenta na luta dos países ocidentais pela liberdade, pela democracia e direito da Ucrânia à sua soberania e a defesa da Carta das Nações Unidas.
Entre as instituições e os media nascidos no "útero" da ordem mundial baseada nas regras que beneficiam o ocidente há 80 anos, forjadas pelos Estados Unidos após a II Guerra Mundial, a versão norte-americana/NATO não tem oposição e os "maus" são os russos.
Mas o mundo está cada vez mais polarizado e essa ordem mundial que trouxe a Humanidade até aqui, dominada pelo Ocidente Alargado, rico e abonado, contrasta cade vez mais com o Sul Global, em desenvolvimento mas com muito caminho para equilibrar estes Hemisférios de interesses.
Não há já dúvidas, porque até o Presidente dos EUA o admite, que está na forja outra ordem mundial motorizada pelo eixo Moscovo-Pequim, que quer que as relações globais assentem em parcerias entre iguais e com o azimute posto no desenvolvimento comum, mas não sem oposição.
Contra esse caminho, que russos e chineses iniciaram mas ao qual aderem cada vez mais potências em desenvolvimento, como a Índia, Indonésia, África do Sul, Arábia Saudita... norte-americanos e europeus ocidentais procuram reorganizar o xadrez global mas sem perder privilégios, ou, pelo menos, procurando reduzir os danos... (ver links em baixo nesta página)
E muito deste "grand jeu" está a ser disputado nos sangrentos campos de batalha da Ucrânia, onde os EUA e aliados procuram, usando Kiev como ferramenta, desmontar o motor da nova ordem mundial fragilizando a Rússia.
E fragilizar esse motor que impulsiona a Humanidade para a nova ordem, passa, como têm frisado os seus líderes, com o Presidente Joe Biden à cabeça, por derrotar a Rússia no campo de batalha, abrindo caminho para desmembrar geograficamente este gigante euroasiático.
Muitos analistas consideram que o derradeiro objectivo de Washington/NATO é partir a Federação Russa em vários Estados de forma a reduzir o poder do eixo Moscovo-Pequim, que faz da China, através do fornecimento contínuo de energia e minerais russos, um gigante imparável que ameaça deixar os EUA para trás tanto economicamente como militarmente.
Só que, pelo menos para já, esse objectivo saiu pela culatra, com a Rússia a ganhar dia após dia vantagem no campo de batalha e com o eixo Moscovo-Pequim cada vez mais sólido e com cada vez mais adesão no Sul Global, como o demonstram as organizações em que estas duas potências estão, como os BRICS ou a Organização para a Cooperação de Xangai (SCO, sigla em inglês).
A grande questão é se as novas alianças que a Rússia tem estabelecido com parceiros do Sul Global, desde logo os BRICS, mas também a SCO ou ainda as organizações euroasiáticas que unem antigas repúblicas soviéticas, serão suporte suficiente para aguentar o atrito das pesadas sanções ocidentais durante muito tempo, porque, inevitavelmente, estas vão corroer o tecido económico russo e fragilizar o seu peso no eixo com Pequim.
Redireccionar o foco para forçar diálogo directo com Washington
E é neste contexto que Moscovo tem estado a divergir o foco político-diplomático do campo de batalha na Ucrânia para um confronto verbal directo com Washington e os seus aliados, como o prova a retórica das ameaças de uso de armas nucleares, os exercícios com o arsenal nuclear táctico...
Ou na procura de colocar a tónica na discussão directa entre Moscovo e Washington, como sucedeu neste fim de semana, quando o Ministérios dos Negócios Estrangeiros russo convocou de urgência a embaixadora norte-americana em Moscovo, Lynne M. Tracy, para a advertir paraos riscos do apoio militar dos EUA a Kiev.
Isso, depois de no Domingo um míssil balístico norte-americano ATACMS, com uma ogiva de bombas de fragmentação, ter explodido sobre uma praia com milhares de pessoas, na Crimeia, matando quatro pessoas, três delas crianças, e ferindo mais de 120, muitos deles com gravidade.
As ogivas de fragmentação, que são, normalmente, usadas para atacar concentrações militares, libertando centenas de pequenos engenhos explosivos, são de uso polémico e mesmo proibias em algumas convenções internacionais, sendo duplamente condenável quando utilizadas contra civis.
Mas não há garantias de que este ATACMS, cuja complexidade exige, segundo vários analistas miliares, operadores norte-americanos no seu uso, tenha sido disparado com intenção sobre a praia da Crimeia, porque nesse trajecto existe um alvo estratégico, a base aérea de Belbek, que tem sido atacado com estas aramas.
No entanto, este episódio trágico para centenas de civis na Crimeia, anexada pela Rússia em 2014 após referendo popular, não reconhecido pela ONU, mas com um resultado avassalador favorável a Moscovo, levou, segundo a TV russa RT, a uma forte advertência do Kremlin aos EUA.
Isto, porque o Kremlin está "perfeitamente ciente" de que os EUA estão por detrás dos ataques ucranianos com os ATACMS, especialmente este, no Domingo, numa praia de Sebastopol, disse o seu porta-voz Dmitri Peskov, citado pela RT.
"Nós vimos um ataque absolutamente bárbaro na Crimeia. Entendemos perfeitamente quem está por detrás desta tragédia, no manuseio desta arma altamente complexa", apontou Peskov, referindo-se claramente aos norte-americanos, acrescentando aos jornalistas: "Perguntem em Washington como é possível aceitar estes ataques contra crianças numa praia".
Na resposta, o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Matthew Miller, considerou as acusações de Moscovo "hipérboles ridículas" sem ligação com os factos, embora acrescente, citado pelas agências, que os EUA "lamentam a perda de todos as vidas de civis nesta guerra".
E repetiu que os Estados Unidos fornecem armas à Ucrânia para que este país "possa defender a sua soberania territorial, que inclui a Crimeia, contra uma agressão armada e injustificada da Rússia".
Apesar desta recusa de responsabilidades por Washington, em Moscovo Dmitri Peskov garantiu que este "crime bárbaro" vai ter consequências, embora não tenha pormenorizado que tipo de reacção poderá surgir da parte russa.
No entanto, esta posição russa, segundo alguns analistas menos distraídos com a propaganda de um e do outro lado atirada para as capas dos jornais e ecrãs das televisões globais, tem como finalidade forçar o caminho da diplomacia como saída para esta guerra que ameaça perpetuar-se se não for feito esse esforço.
O próprio Presidente russo, Vladimir Putin, já disse que quaisquer negociações terão se envolver Moscovo e Washington, porque Kiev não possui qualquer autonomia para o efeito a partir do momento em que ficou dependente das armas e do dinheiros ocidentais.
E com esta refocagem na responsabilidade última no uso das armas norte-americanas mais sofisticadas, o Kremlin está a tentar criar, no meio do nevoeiro da guerra, um palco para colocar a "mesa" das futuras negociações que permitam acabar com esta guerra cada vez mais impopular entre as sociedades ocidentais devido aos seus efeitos devastadores nas suas economias.
Até à realização das eleições norte-americanas de 05 de Novembro, pouco mais avançará este processo, até porque é difícil a Joe Biden e à sua equipa eleitoral perceber o efeito de uma mudança de agulha na condução da guerra no leste europeu, fosse ela qual fosse...
Mas depois de 05 de Novembro, consiga Biden ser reconduzido, ou volte o antigo Presidente Donald Trump à Casa Branca, nada ficará igual, até porque os efeitos nefastos da guerra estão a esboroar o apoio popular em quase todos os países europeus e nos EUA a este conflito.
Disso bom exemplo foi a afirmação recente do chanceler alemão, que, no rescaldo das eleições europeias, onde o seu partido foi humilhado nas urnas, admitiu que o povo alemão está cansado da guerra e cada vez mais contra o apoio de Berlim à Ucrânia.
A razão é simples e conhecida. Com as sanções europeias, a Alemanha ficou sem acesso à energia barata importada da Rússia e isso foi devastador para o seu sector industrial, que é o motor de toda a economia da União Europeia.
Isto tem um significado claro: também na Europa ocidental se está à espera para ver como correm as eleições nos Estados Unidos.
Porque os europeus sabem perfeitamente que sem o suporte da poderosa indústria militar norte-americana não há capacidade europeia para manter o fluxo de armas e dinheiro em direcção ao esforço de guerra ucraniano.
O plano Trump para acabar com a guerra
É simples: se for eleito, Donald Trump vai telefonar ao Presidente Volodymyr Zelensky e dizer-lhe que ou inicia negociações directas com Moscovo ou acaba o apoio norte-americano de imediato.
Trump já tinha dito que ao regressar à Casa Branca acabaria com a guerra na Ucrânia em 24 horas, mas nunca tinha explicado como. Fê-lo agora. E segundo The Guardian, dois conselheiros do antigo Presidente delinearam o plano.
Além de chantagear Kiev com o fim do apoio dos EUA se não aceitar negociar com Moscovo, Trump vai ameaçar igualmente os russos que se não aceitarem negociar com os ucranianos, isso levará Washington a duplicar o apoio à Ucrânia.
O plano foi divulgado pelo coronel Keith Kellogg, um dos assessores miliares para a segurança nacional de Donald Trump, numa entrevista recente, onde acrescentou que depois destas advertências a ambos os lados, terá de ser de imediato acordado um cessar-fogo.
Esse cessar-fogo respeitará as posições que ambos os países tiverem no terreno, podendo estas ser ou não mudadas no decorrer das negociações.
Apesar do coronel Keith Kellogg admitir que a reacção de Trump a este plano foi boa, o seu porta-voz, citado pelos media norte-americanos, avisou já que só as declarações oficiais do antigo Presidente são oficiais e definitivas.
Ainda não há reacções em Kiev e em Moscovo a este plano.