O contexto não é surpreendente, mesmo sendo perigoso: a antiga subsecretária de Estado, Vitória Nuland, afastada em Março por excessos cometidos no contexto do apoio a Kiev, veio esta semana defender que Washington deve autorizar os ucranianos a usar os misseis de longo alcance norte-americanos para atacar alvos em profundidade no território russo.
A voz de Nuland é importante porque, como apontam vários analistas há anos, representa um universo muito relevante de pressão dentro dos corredores do poder em Washington, os "neo cons", conservadores belicistas radicais.
E de tal modo assim é que o secretário de Estado, Antony Blinken, de quem "depende" a diplomacia dos EUA, segundo The New York Times assumiu o papel que era o de Vitoria Nuland dentro da Administração Biden, pugnando por uma escalada na confrontação com Moscovo.
Começando, desde logo, com a pressão sobre o Presidente, e sob os militares no Pentagono que se opõem a alimentar a possibilidade de um confronto com a Federação Russa, para que, como já foi pedido, repetidamente, pelo Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, os EUA autorizem Kiev a usar os seus misseis de longo alcance, ATACMS, para destruir bases aéreas e concentrações de tropas na profundidade do território russo.
Isso mesmo está numa notícia de forte impacto publicada por The New York Times, reconhecidamente o jornal norte-americano com mais acesso à Administração Biden. Publicada nesta quinta-feira, 23, que está a alarmar as chancelarias mundiais pelo risco que enuncia.
Na memória desses "corredores" do poder global estão as palavras, quase em simultâneo, o que não foi por acaso, de Vladimir Putin e Joe Biden, logo em Março de 2022, alertando para uma inevitável guerra nuclear, a III Guerra Mundial, se, no âmbito do conflito na Ucrânia, EUA e Rússia se encontrassem directamente no campo de batalha.
O mesmo fez o ministro dos Negócios Esrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, uma semana após a invasão de 24 de Fevereiro de 2022, como o Novo Jornal noticiava aqui
E é precisamente isso, porque o Kremlin já alertou para o facto de que uma autorização do uso de armas ocidentais de grande alcance, como os misseis norte-americanos ATACMS ou os britânicos storm shadow, projecteis balísticos com um raio de acção superior aos 350 kms, levaria a uma resposta contra alvos destes países em qualquer parte do mundo.
Este aviso só foi, na verdade, efectuado ao Reino Unido, depois de o ministério dos Negócios Estrangeiros, David Cameron, ter dito que os ucranianos podiam usar os misseis britânicos para atacar em profundidade o território da Federação, mas não há nada que diga que tal aviso não se aplicaria aos norte-americanos...
Alias, este cenário é de tal forma sério que, por exemplo, como sublinha o analista britânico Alexander Mercouris, durante a Guerra Fria nunca a União Soviética ou os EUA forneceram armamento a terceiros para atacarem o "outro" directamente, porque esse era o entendimento tácito que exista entre as duas grandes superpotências nucleares.
Se os EUA, como The New York Times avança que Blinken está a pressionar a Casa Branca para fazerem, autorizarem os ucranianos a usar os ATACMS para flagelar alvos dentro do territírio russo além dos territórios anexados desde 2014 na Ucrânia, ou David Cameron propõe que Londres faça o mesmo, então o dedo no gatilho que garante a destruição total mútua pode muito bem deslizar para dentro do inferno que assim estaria garantido.
De acordo com o jornal novaiorquino Blinken está a pressionar fortemente a Casa Branca a permitir que Kiev use as armas fornecidas pelos EUA, que só podem ser os misseis ATACMS, ou, eventualmente, a versão mais longa dos HIMARS, com os misseis PrSM (500 kms).
Com estas movimentações do lobby pró-guerra em Washington, Joe Biden deverá levantar a proibição do uso destes projecteis para alvejar interesses russos em profundidade porque em Washington se compreende que isso levaria a uma escalada e potencialmente à III Guerra Mundial.
O esforço feito por este grupo de interesses, que, segundo vários analistas mistura serviços à indústria militar com a defesa de interesses na Ucrânia, onde uma derrota de Kiev é vista como a mais devastadora tragédia para os EUA desde a humilhação no Vietname, que abrange dezenas de congressistas dos dois partidos, democratas e republicanos, coincide com a recente e repentina visita de Blinken a Kiev.
Os relatos dos media europeus e norte-americanos, agora muito mais versáteis na cobertura da guerra que nos dois primeiros anos, destacando mesmo o avanço demolidor dos russos nas diversas frentes de batalha, referem que o chefe da diplomacia de Washington encontrou na capital ucraniana um cenário de total descrédito numa vitória militar sobre a Rússia.
Especialmente desde que os russos abriram a nova frente de guerra na região de Kharkiv, a norte do Donbass, e se antevê a abertura de outra em Sumy, já mais próximo de Kiev, o que está a gerar uma convulsão interna por falta de capacidade de resposta de Kiev, seja por falta de armas ou por falta de capacidade de mobilização de recursos humanos.
E este "push" para escalar o conflito no leste europeu para uma guerra directa entre EUA/NATO e Rússia é a única via para travar esse desfecho que seria uma devastadora, pelo menos é assim visto nos corredores "neo conservadores" de Washington, humilhação para a maior potência militar e económica do Planeta.
Isto, porque, como sublinham cada vez mais analistas nas últimas semanas, os sinais de fragilidade de Kiev crescem, sendo que um deles só agora é referido, que é a ausência que qualquer resistência popular nos territórios ocupados pelos russos, o que, por norma, significa que as populações nestas geografias não estão, pelo menos abertamente, contra o "ocupante".
Uma das justificações para correr o risco de um devastador confronto nuclear é que se a Ucrânia sair derrotada, é toda a NATO; e consigo, todo o Ocidente Alargado que é derrotado, abrindo assim espaço para o triunfo da Nova Ordem Mundial que é o objectivo do eixo Moscovo-Pequim e Nova Deli, em nome do Sul Global, (ver links em baixo) o que se traduziria pela perda da hegemonia norte-americana que se mantém desde o fim da II Guerra Mundial, em 1945.
A este contexto que ameaça despoletar uma confrontação directa entre a NATO/EUA e a Rússia, em Moscovo, o Presidente Putin reagiu, primeiro, como o anúncio de exercícios com sistemas de armas nucleares tácticas, e depois com o alargamento destes por uma mais vasta região do oeste e sudoeste da Federação, abrangendo agora também a Bielorrússia, onde está para uma visita de dois dias com esse objectivo na agenda.
Pior que isso, alguns analistas, como o major-general Agostinho Costa, entendem que esta movimentação de sistemas nucleares tácticos não são meros exercícios de teste à sua prontidão, mas efectivamente uma deslocação de meio para o terreno com o objectivo potencial de emprego numa confrontação com o ocidente.
E em Kiev, o Presidente Zelensky, que sabe que o poder lhe pode escapar por entre os dedos caso não consiga reverter as perdas cada vez mais evidentes nas trincheiras, até porque o seu mandato terminou a 20 de Maio, mantendo o poder respaldado apenas na Lei Marcial em vigor, o que fragiliza a sua legitimidade política, tem insistido como nunca na entrada da NATO na guerra.
Voltou mesmo a apelar a que seja criado pela NATO uma "zona de exclusão aérea" sobre a Ucrãnia, com aviões ocidentais a abater misseis e caças e bombardeiros russos, bem como sistemas Patriot a disparar contra aviões e misseis russos.
Ao que, em Moscovo, foi respondido, pelo prota-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, com uma clara advertência: se tal suceder, esses sistemas de armas serão atacados, independentemente de estarem em países da NATO.
Ou seja, está claramente a apertar o já muito estreito corredor que ainda permite sair da possibilidade de um devastador confronto entre a Federação Russa e os Estados Unidos da América e dos seus aliados ocidentais da NATO.