Prova de que é assim pode ser encontrada nas notícias que inundam os media internacionais por esta altura, desde a aceitação por parte do Presidente Volodymyr Zelensky de negociações com a Rússia numa Cimeira de Paz à deslocação do seu ministro dos Negócios Estrangeiros à China.
Se a aceitação anunciada por Zelensky para ver uma delegação russa na próxima Cimeira de Paz, após o desastre que foi a que teve lugar em Junho na Suíça não causou espanto, porque era a única forma de "limpar" o fracasso de Bürgenstock, já a ida a Pequim de Dmitri Kuleba é uma "bomba".
Em pano de fundo para estas movimentações repentinas está, como é já claro para todos, o muito provável regresso do antigo Presidente Donald Trump à Casa Branca em Janeiro de 2025 se, como as sondagens dizem de forma robusta, vencer as eleições de 05 de Novembro próximo.
Do lado ucraniano, onde é há muito sabido que sem o apoio contínuo dos Estados Unidos em armas e dinheiro não existe forma de fazer face aos russos-
E quando Trump diz que, se ganhar as eleições, vai acabar com o conflito em 24 horas, isso só pode querer dizer que é Kiev quem mais ficará a perder...
Sabendo-se que a China tem um pacto de amizade robusto e uma parceria ilimitada com a Rússia e tem um plano de paz que Moscovo encara com bons olhos, a ida do chefe da diplomacia ucraniana a Pequim só pode querer dizer que Kuleba leva na bagagem a disponibilidade adequada a esta realidade.
E isso só pode ser ouvir o que têm os chineses a dizer e procurar que o Presidente Xi Jinping aceite amaciar a sua proposta agregando-lhe alguns dos elementos da proposta em 10 pontos do Presidente Zelensky, fazendo de um eventual documento que sintetize ambos os planos uma nova ferramenta de trabalho, eventualmente para apresentar na próxima Cimeira de Paz, já com a presença de Moscovo.
Ora, tanto o Presidente Xi Jinping, que tem mantido sucessivos encontros com Vladimir Putin, e onde o tema guerra na Ucrânia foi sistematicamente debatido, como Volodymyr Zelensky, conhecem os limites da disponibilidade anunciada há largos meses pelo Kremlin para negociar com Kiev.
E esses limites são, no essencial, o regime ucraniano aceitar manter o país neutral e fora da NATO, retirar as suas tropas das cinco regiões anexadas por Moscovo, Crimeia, em 2014, e Kherson, Zaporizhia, Lugansk e Donetsk, em 2022, e expurgar do Estado os seus dirigentes com ideologia neonazi ou com ligações aos grupos neonazis que pontificam nas suas forças armadas.
Como vai Dmitri Kuleba conseguir convencer Xi Jinping a tentar convencer Putin a ceder pelo menos em parte nas suas exigências para que possam daí emergir negociações para acabar com o conflito? Saber-se-á nas próximas horas...
"O Incendiário" volta a aparecer
Mas há sinais no terreno de que o mais certo é que Kiev avance com a disponibilidade de abdicar de parte das regiões anexadas pela Federação Russa, provavelmente a Crimeia e, eventualmente, as zonas mais russófilas do Donbass (Donetsk e Lugansk).
E os sinais foram dados pelo antigo primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que, depois de ter visitado Donald Trump, o provável futuro Presidente dos EUA, anunciou que lhe levou um plano de paz para a Ucrânia, como complemento à estratégia do norte-americano para acabar com o conflito "em 24 horas" como o próprio anunciou.
Entre as suas propostas, e no meio da fanfarronice própria d""O Incendiário", como ficou conhecido depois de em Março de 2022, pouco depois da invasão russa da Ucrânia, ter obrigado o Presidente Zelensky, com apoio de Washington, a abandonar as negociações de paz com Moscovo, está a entrega da Crimeia a Moscovo em troca do fim da guerra e da reunificação ucraniana com as restantes, ou parte destas, regiões anexadas.
Isso mesmo veio dizer Boris Johnson num artigo de opinião pulicado num jornal britânico, onde, como seria de esperar do seu histrionismo, também defendeu que a Ucrânia deve, e pediu a Donald Trump que o venha a autorizar, poder usar os misseis de longo alcance ocidentais para atacar todo o território da Rússia onde existam alvos militares ou estratégicos.
"Putin terá de sair de pelo menos as regiões ocupadas em 2022 (a Crimeia foi anexada em 2014), e, para garantir que não haverá novo conflito, a Ucrânia terá de ser reconhecida como um país livre, capaz de escolher entrar na NATO e na União Europeia", escreveu, acrescentando que isso seria "uma grande vitória para os EUA e para o mundo".
Ou seja, Johnson continua a defender que a Rússia pode ser derrotada no campo de batalha pelos ucranianos com o apoio ocidental... E foi dizer a Trump que será essa pressão militar sobre Moscovo que levará o Kremlim a aceitar o plano de paz de Donald Trump.
Entretanto, com esta visita, que começou nesta terça-feira, 23, a Pequim, a primeira desde a invasão de 24 de Fevereiro de 2022, o ministro ucraniano dos Negócios Estrangeiros, Dmitri Kuleba, terá de clarificar se partilha das ideias de Boris Johnson ou se as refuta...
Porque o artigo do antigo primeiro-ministro britânico no Daily Mail pode muito bem ser mais uma implosão, como o fez em Março de 2022, de uma tentativa séria de acabar com o conflito.
Recorde-se que a proposta de paz chinesa distingue-se claramente da proposta ucraniana pela forma como determina que a paz só será possível se forem salvaguardados, através de negociações, os interesses fundamentais da Rússia.
Já a proposta de Zelensky exige, sem quaisquer negociações, que os russos abandonem todos os territórios que ocuparam nestes cerca de dois anos e meio, que os dirigentes russos sejam julgados em tribunais internacionais e que Moscovo pague as despesas da reconstrução do país.
Por seu lado, o Kremlin já deixou claro que o conflito termina no dia em que Kiev aceitar a neutralidade, mantendo-se, com garantias, fora da NATO e as suas tropas abandonarem as posições que ainda ocupam nas regiões anexadas pela Federação Russa.
Como poderá ser exequível compilar interesses e condições tão exigentes e extremadas num único plano, não ainda de paz, mas de condições mínimas para que possam ser iniciadas negociações, é coisa para os mais experientes diplomatas...
Para já, tempo não será um problema, até porque Kuleba vai estar em Pequim até sexta-feira, a convite do seu homólogo, Wang Yi.
A fuga
Enquanto isso, na linha da frente, as forças ucranianas estão claramente em grandes dificuldades com a pressão russa, especialmente desde que foi aberta a frente norte, em direcção a Kharkiv, o que obrigou as unidades cada vez mais exíguas de Kiev a distribuírem-se por uma frente ainda mais extensa, que já tinha cerca de 1200 kms.
Isto, quando na sociedade ucraniana são cada vez mais intensos os protestos populares que, sendo contra a guerra, surgem nas ruas sob a forma de manifestações contra a falta de electricidade ou pela desmobilização, como a lei prevê, de militares que já estão a combater desde 2022, porque é ilegal fazê-lo perante o estado de lei marcial que vigora no país.
E quando nas redes sociais sucedem-se a um ritmo maior dia após dia os vídeos de grupos de populares a fazerem frente, por vezes com violência, às unidades que o Exército criou para mobilizar pela força os homens ucranianos em idade militar que tentam escapar a essa mobilização.
O mesmo sucede nas fronteiras com a Roménia e com a Hungria, onde milhares de jovens ucranianos - que chegam a pagar 10 mil USD a passadores para ficarem à salvo do outro lado da fronteira -, são detidos por unidades especiais da polícia e do exército, entre as centenas que conseguem passar, e entre os que morrem a tentar.