Os ataques indiscriminados sobre as populações do Kasai que se opõem ao terror espalhado pelas milícias do antigo chefe tribal Kamwina Nsapu e sobre as instituições do Estado congolês já provocaram mais de 400 mortos, um milhão de deslocados, dos quais quase 40 mil procuraram refúgio em território angolano, na Lunda Norte.

Face a este cenário de terror, Zeid Al Hussein, Alto-Comissário da ONU para os Refugiados (ACNUR), depois de terem surgido suspeitas de que as milícias de Kamwina Nsapu estarão a ser instrumentalizadas politicamente com o objectivo de criar uma justificação para novo adiamento das eleições que terão necessariamente de ser realizadas até ao final do ano, quer ver no terreno uma investigação patrocinada pela comunidade internacional sob orientação das Nações Unidas.

Recorde-se que as eleições gerais na RD Congo deveriam ter sido realizadas em Novembro de 2016, nas quais o Presidente Joseph Kabila não se poderia candidatar a um terceiro mandato, tendo, depois de confrontos em Kinshasa que fizeram centenas de mortos, sido assinado um acordo com a oposição que impõe a realização de eleições até Dezembro deste ano sob ameaça do regresso da violência à capital congolesa.

Com o eclodir dos confrontos no Kasai, membros do Governo de Kabila chegaram a admitir que não estavam reunidas as condições mínimas para realizar eleições, ao que a oposição respondeu negando essa pretensão, tal como a comunidade internacional em uníssono, à excepção de alguns países vizinhos, como foi o caso de Angola, que manteve sempre uma posição de relativa neutralidade, mas fazendo sistemáticas declarações amistosas para o Governo de Kinshasa, apelando, todavia, sempre ao diálogo e à contenção das partes.

Face a estas dúvidas, com maior vigor após a morte de dois funcionários da ONU na RDC, uma sueca e um norte-americano, no Kasai, e depois de algumas personalidades, como é disso exemplo Sindika Dokolo, empresário congolês casado com Isabel dos Santos, terem admitido desconfiar do comportamento de Joseph Kabila neste processo, o ACNUR exigiu uma investigação sólida internacional.

Primeiro, Zeid Al Hussein disse ao Governo de Kabila que queria uma resposta clara até à passada quarta-feira sobre a definição do inquérito/investigação no Kasai, ameaçando com um pedido de acção judicial internacional. Perante a ausência de uma resposta, o ACNUR avançou agora de forma concreta para esse pedido.

"Os crimes cometidos no Kasai são de tal forma graves que têm de ser uma preocupação para a comunidade internacional no seu todo, especialmente no seio do Conselho dos Direitos Humanos da ONU", atirou Hussein, sublinhando que essa é a obrigação do mundo face aos crimes e às mortes verificadas.

Zeid Al Hussein disse ainda que é dever da comunidade internacional "enviar uma mensagem clara aos autores destes crimes de que está atenta e não vai perdoar", afirmando que esta é "a única forma de garantir que a impunidade do terror na RDC chega ao fim".

Como pano de fundo a esta decisão da agência da ONU para os refugiados, para além dos mais de 400 mortos confirmados, incluindo os corpos encontrados em dezenas de valas comuns, dos deslocados, da violência exercida sobre crianças, idosos e mulheres de forma brutal, dos refugiados que chegaram a Angola com as mais terríveis sequelas, desde fome extrema a queimaduras e amputações irracionais, o ACNUR exige agora que não seja dada quaisquer oportunidades aos criminosos para saírem impunes e garantir justiça para as vítimas.

"A escassa resposta interna a tais crimes e violações dos Direitos Humanos, obriga-nos a exigir uma investigação internacional", sintetiza a ONU (ACNUR).

As Nações Unidas têm na RD Congo a mais extensa, cara e completa missão em todo o mundo, a MONUSCO, para fazer face a um dos mais conturbados e violentos países do continente africano, com conflitos étnicos e de guerrilhas, algumas delas estrangeiras, como é o caso das provenientes do Uganda (ADF) e do Ruanda (FDLR) nos Kivu, Norte e Sul, com as sistemáticas atrocidades do tenebroso M23 no Leste, ou as de criação mais recente, como as milícias Kamwina Nsapu, no Kasai.

O potencial de dispersão da violência para os países vizinhos é enorme e reconhecido tanto pela comunidade internacional como pelo próprio Governo de Kinshasa e mesmo Angola já viu essa realidade chegar-lhe à porta porque as milícias já atacaram vários postos montados pelas FAA ao longo da fronteira para impedir a violação das fronteiras pelas milícias.

Há ainda a questão da dispersão étnica transfronteiriça, como é o caso dos Tshokwe (Tchokwe) que vivem entre a RDC e Angola e que são uma das principais vítimas das milícias de Kamwina Nsapu no Kasai por se oporem às suas acções violentas.

Existe ainda o perigo de o envio de milhares de homens das Forças Armadas da RDC (FARDC) para "limpar" o Kasai resulte na compressão dos milicianos entre o seu avanço e as forças angolanas colocadas ao longo da fronteira, gerando o envolvimento directo das FAA neste conflito.