Exemplos, de que há memórias, respaldam o que se disse: Ludwig Erhard, o mago do "milagre económico" alemão, viu o lustro do seu Governo ensombrado quando travou o braço-de-ferro com um Bundesbank que levara a cabo uma estratégia deliberada de provocação de recessão, fomentada por um impasse em torno do mecanismo de taxas de câmbio fixas do sistema de Bretton Woods, que desgastou-lhe o capital político. "Tivemos de usar a força bruta para pôr ordem na casa", confessou anos mais tarde o então presidente do Bundesbank Karl Blessing (apud VAROUFAKIS, 2016, p.106), que nutria preferência por outras formações políticas que não a de Erhard; outrossim, sabe-se que George Bush "pai" viu no Fed de Alan Greenspan o principal carrasco da sua carreira política, culpabilizando-o pela sua derrota eleitoral, em 1991, em virtude de algumas medidas de arrefecimento da economia que o Fed vinha adoptando. "Nomeei-o para um segundo mandato e ele afastou-me do meu", confessou ele exasperado numa cadeia televisiva em 1998 (apud GREENSPAN, 2009, p.141). Portanto, esses e outros exemplos desnudam com particular acuidade as fricções, ora latentes ora reais, que podem advir da relação entre um Governo em exercício e um banco central cujos estatutos conferem-lhe maior autonomia em relação àquele.

A temática relativa à independência dos bancos centrais encerra, primeiro que tudo, uma batalha de ideias em cujo campo epistemológico encontram-se entrincheirados os sequazes de uma autoridade monetária caracterizada por elevado grau de independência - quer a nível dos instrumentos, quer a nível dos objectivos a prosseguir - sob as rédeas de tecnocratas dotados de poderes legais susceptíveis de os blindar face às interferências e pressões políticas, por um lado, e, por outro, os fautores de uma autoridade monetária menos independente que esteja sob a alçada do Governo que a incumbiu de prosseguir uma política monetária socialmente óptima, afadigando-se, tanto quanto possível, em lograr encontrar um ponto de equilíbrio ou de compromissos entre as políticas monetária e orçamental: é a mundividente guerra travada entre monetaristas, que concentram o foco na inflação, e keynesianos, que esmeram-se em conseguir uma "taxa natural de desemprego (

Que grau ou nível de independência a se confiar a um banco central é, só por si, uma questão que constitui o pomo da discórdia, cuja componente intencional dos interessados na matéria é sempre levar a melhor sobre o oponente e, assim, alicerçar um modelo econométrico de gestão da política monetária passível de conformar e moldar os principais agregados macroeconómicos, em consonância com as asserções que propugnam. Neste quadrante, os monetaristas, fautores de um banco central independente, asseveram que as pressões e interferências dos governos na gestão da política monetária são assaz perniciosas, na medida em que perturbam os banqueiros centrais no quesito das suas tarefas-mor de assegurar a estabilidade dos preços, a adequação do stock da massa monetária ao nível da produção e, bem assim, a regulação e supervisão do sistema bancário nacional. Nesta batalha de ideias, os economistas da escola monetarista ganham terreno quando a taxa de inflação galopa a níveis corrosivos, em relação ao poder de compra, num contexto em que a economia começa a tornar-se sobreaquecida devido a excessos de gastos agregados e ao crescimento sustentado das disponibilidades monetárias.

Nos antípodas, os keynesianos contra-argumentam que uma arquitectura dessa estirpe tende a alicerçar um banco central mais deferente para com os interesses do capital, como, por exemplo, o Fed (Federal Reserve System) tem sido bastas vezes acusado de estar ao serviço de Wall Street, da alta finança, por revelar-se quase sempre frouxo no capítulo da regulação do sistema bancário e dos capitais especulativos altamente desestabilizadores e, quando muito, preocupar-se excessivamente em partir a espinha dorsal da inflação, descurando com efeito a necessidade de criação de postos de trabalho. E mais: os opositores deste desenho institucional recorrem também ao libelo segundo o qual, sob rédeas soltas, os banqueiros centrais independentes furtam-se à responsabilidade democrática, quedam-se no movediço terreno do clientelismo em flagrante sinal de captura por parte dos mercados financeiros, muito por conta de o qualificativo "independente" patrocinar-lhes uma [falsa] ideia de que estão isentos de sindicância heterorgânica como uma criança cujos pais estão ausentes. Como um dos expoentes máximos dessa variável cognitiva, Joseph Stiglitz dispara: "A Reserva Federal e o seu presidente gostam de fingir que estão acima da política. É conveniente não se ser responsável: ser independente" (STIGLITZ, 2014, p.337).

Nesta batalha de ideias, uns estão certos e outros têm razão. De facto delegar a política monetária às mãos de tecnocratas sem adequados mecanismos de escrutínio público, de responsabilidade democrática, é uma decisão implausível sob muitos aspectos: a título de exemplo, o chairman do Fed está constituído na obrigação de prestar contas ao Congresso em audições semi-anuais e fazer-se presente perante a Comissão Bancária do Senado sempre que o Federal Open Market Committee haja feito política monetária (vide o n.º1/a, Secção 2, sob a epígrafe General Policy: Congressional Review, da Federal Reserve System Act de 1913). E, pelas mesmas razões, permitir que a política monetária seja equacionada sempre e nos termos em que o Governo definir é escancarar as portas do inferno.

Ao nível da análise económico-normativa, os bancos centrais devem estar subtraídos e protegidos das interferências dos políticos que, como se sabe, visam sempre objectivos a curto prazo. Sucede que, em decorrência dos ciclos eleitorais, acossados pela preocupação de reeleição, os políticos governantes são muito propensos a estimular excessivamente a economia, sobreaquecendo-a, na medida em que têm eleitores a contentar: quando encaram os banqueiros centrais como seus agentes, instruem-nos a reduzir tanto quanto possível as taxas de juro directoras para alavancar o investimento privado, bem como forçá-los a libertar fundos para a concessão de crédito agregado à economia, por forma a dinamizar a produção, que consequentemente influenciará a procura de trabalho e, assim, reduzir-se a taxa de desemprego. Por consequência disso, a factura social a pagar é a onda inflacionária que se agiganta ao ponto de estrangular os rendimentos obtidos no bojo desses estímulos. Daí competir aos bancos centrais a tarefa de "retirar as bebidas da sala quando a festa começar a ficar animada demais", adaptando a asserção de William McChesney Martin Jr. (apud KRUGMAN, 2009, p.148).

Fazer política monetária requer essencialmente um tecnicismo que não pode ser ditado por razões imediatistas que não reflectem o comportamento da economia real. No entanto, as operações de mercado aberto (Open Market Committee), a via pela qual os bancos centrais influenciam a economia, mediante a definição das taxas de juro, das reservas obrigatórias e das taxas de (re)decontos, devem ser levadas a efeitos sem interferências políticas directas. Assim, um Governo despesista que incorre sistematicamente em défices deliberados, "indisciplinado" em termos orçamentais, que recorre à emissão de moeda para financiar a dívida pública, que realiza despesas de má qualidade, só pode ser posto nos eixos quando for contrabalançado - a bem da estabilidade dos preços, um dos pressupostos para o crescimento económico - por uma autoridade monetária com mandato para fixar livremente os seus objectivos a prosseguir.

É sob este prisma, teórico-doutrinal, que a discussão em torno da concessão de independência ao Banco Nacional de Angola deve medrar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GREENSPAN, ALAN (2009). A Era da Turbulência. 3.ª Edição, Lisboa: Editorial Presença.

STIGLITZ, Joseph (2014). O Preço da Desigualdade. Lisboa: Bertrand

KRUGMAN, Paul (2009). A Crise de 2008 e a Economia da Depressão. 4.ª Edição, Rio de Janeiro: Elsevier.

VAROUFAKIS, Yanis (2016). Os fracos são os que sofrem mais? Lisboa: Marcador

*Estudante universitário