Elas vinham de Catete, vinham de Malanje e N"Dalatando com os seus panos cheios de alegria, mágoas e alguns dikulos também. Floresciam a paisagem quando não houvesse tristeza, traziam fuba, kissangua, batata doce e outras coisas, porque era feio bater a porta dos parentes de mãos vazias.
Na contenda da dor, além de chorar, elas matavam galinhas, porcos, faziam rezas e nos kombas enchiam as mesas de bolos e quitutes. Eram irmãs, primas e tias dos meus avós maternos e permanecem entre os meus pensamentos, já que tenho o hábito de emparelhar lembranças com sons, cânticos, letras e melodias.
Em época de pós-revolução, as músicas que nos davam a ouvir na rádio juntavam a saudade e as lembranças de tudo o que se vivia e foi assim que Morro da Maianga de Ruy Mingas passou a figurar entre as minhas músicas de eleição. Engraçado é que só há pouco tempo, já na casa dos 40 é que passei a ligar esta música às minhas origens cabo-verdianas, chorando (quase sempre) na parte em que fala dos emigrados das ilhas, com o sal do mar nos cabelos que falam de bruxedos e sereias, tocam violão e puxam faca nas brigas.
Preservei as recordações e os silogismos a todo o tempo, encantando-me com a soberba musicalidade e mestria de Ruy Mingas. Não conheço outro artista angolano, que tenha abraçado tão bem a poesia contemporânea; que tenha posto alma e devoção em estrofes, versos e rimas; que tenha colocado as narrativas dos poetas no ponto mais alto do entendimento e percepção intelectual, sem qualquer tentativa de se mostrar inatingível ou tântrico.
Devo parte da minha absorção, lucidez e consciência às músicas de Ruy Mingas, que num modo de explosão individual reavivam infindáveis valores da nossa cultura como o pregão da Avó Ximinha em Makezu de Viriato da Cruz, ou os regatos do alegre serpentear que aliviam a tortura do colonialismo em Monangambé, do poema Monangamba de António Jacinto.
As horas difíceis das perdas e da espera ficaram eternizadas numa canção que acabou por se dissociar do poema Adeus a Hora da Largada de Agostinho Neto, pela forma e beleza proporcionada pelo cantor. Em Poema de Farra descobri o Mário António de Oliveira, poeta angolano falecido em 1989; em Mamã Terra encantei-me com a proporção utópica de Onésimo da Silveira, poeta e diplomata cabo-verdiano falecido em 2021; em Meninos do Huambo vi um dos mais altos tributos culturais numa épica letra de Manuel Rui Monteiro.
Ruy Mingas não se limitou a cantar em português, valorizando o cancioneiro angolano. Cantou em Kimbundu em temas como NBiri nBiri, Nguidifangana e Suzana, transformando-o, na minha visão em algo muito maior.
Antes de ter a oportunidade de conhecer Ruy Mingas pessoalmente, a imagem que tinha era de o ver cantar com o irmão André no programa Gente e Tons, que era exibido na década de 90 na TPA, a música Flor de Maracujá, poema de Ernesto Lara Filho.
Um momento lindo e deveras emocionante, dois grandes nomes da nossa música num espaço e num período em que se enaltecia e reconhecia os artistas e a sua importância na construção de uma nação. A vida deveria ser maior e ter mais tempo, para que a ousadia da morte não zombasse tanto com a nossa forma de ser e estar, para que pudéssemos dar atenção apenas ao que realmente importa e que nesse grau de relevância estivessem sempre pessoas de grande tributo.
Falar hoje de Ruy Mingas, é rebuscar sentimentos como quando o conheci em 2001 como integrante da primeira turma de estudantes de Relações Internacionais da Universidade Lusíada de Angola. Quando terminamos o curso em 2006, ele lá estava enquanto patrono da instituição e cantou para nós à capela. Muitos choraram de emoção porque a música tem a particularidade de despertar o que é reflexivo, o que é influenciável, o que é belo, o que é taciturno, numa intensa escala de poder sobre a psique humana.
Aproximei-me de mansinho, para transparecer toda a minha admiração e fascínio e fomos tendo várias conversas, sobre o mundo e a vida. No percurso, conheci a Ângela, braço direito do pai na Universidade, um vapor de vida, uma instrumentalização linda de ser mulher, uma obra de fala singela e perfeita, com voz rouca que canta tão bem ou não fosse ela uma Mingas nata.
Estive ontem a folhear o meu álbum de casamento, há 20 anos, e lá estão Ruy Mingas e D. Julieta a contemplar a felicidade de um jovem casal prontos para honrar uma vida a dois com um bebé a caminho. Um mês depois do Yussane, meu filho, ter nascido, fizemo-nos à Cabral Moncada para apresentar o mais novo Monteiro, sobrinho neto do outro Rui que era seu amigo e parceiro.
Com o surgimento da TV Zimbo, dá-se o cruzamento com o filho Carlos que já fazia estrondo na Rádio com o seu Bombástico e sob o cognome Caio. Nessa mesma altura, entrevistei Ruy Mingas e pu-lo a cantar numa peça transmitida em horário nobre, só mesmo um Amilcar Xavier para deixar a cultura reinar num noticiário que ganhou força por ser feito por quem sabe.
Tenho muita nostalgia disto, como vou tendo de quem parte e de quem ainda cá está, mas que já não existe. Nos 80 anos queríamos passar, eu particularmente queria só mostrar o meu amor pois é isto que dá gozo e que alimenta quem sente o imperceptível.
Ando para escrever sobre as minhas estrelas negras nacionais, todas elas ligadas à música, quero falar do Waldemar, do Pop Show, do Proletário, do Mukenga, do Nick, do Robertinho, da Nani, da Dina Santos, do Raul Indipwo, do Zecax, do Beto de Almeida... tenho adiado pelo nulo frenesi de 2023.
Ruy Mingas é o maior ícone dos meus astros em forma e valor, um ser humano incomensurável que fez das canções de roda, prosas de amor, que tornou poemas em relatos dos nossos esquecidos costumes dando vida à ressonância dos seus autores... um autêntico mestre de encantar com um dom que é legado de hipérbole enfeitiçada.
Ao filho Ruy... a tua terra, que é tua mãe, despede-se com a saudade do que ficou para trás e consciente da tua riqueza e valor.