Que leitura faz das eleições previstas para Agosto?

A realização de eleições é uma necessidade democrática e constitucional. Elas representam o momento em que os cidadãos estão mais próximos do poder de determinar o seu destino. Vejo-as, pois, com alegria pelo que elas significam o acentuar da democracia em Angola, contribuindo para a subida no quadro internacional das nações classificadas pela sua qualidade democrática. Vejo-as, também, com alguma apreensão porque há muitas dúvidas no ar, quer a nível dos partidos políticos, quer da sociedade civil em geral, sobre a transparência de algumas fases do processo eleitoral, especialmente no que respeita às bases de dados dos eleitores e ao apuramento dos votos, duas fases que, na sua essência, lidam com o trato electrónico dos dados.

Com base na sua experiência, tanto em Angola como noutros países, o que acha que deve ser feito para resolver essas dúvidas que podem ensombrar o nosso processo eleitoral?

A interferência da tecnologia na preparação e na realização de eleições corresponde a uma necessidade de aperfeiçoamento dos métodos que é a tendência universal. Na verdade, ela comporta riscos muito inferiores aos da antiga recolha e tratamentos manuais de toda a informação pertinente aos eleitores, tanto quanto à sua inscrição nos cadernos eleitorais, como no apuramento dos votos. Hoje, por exemplo, todos usamos o telefone portátil de última geração e já não aceitaríamos comunicar de outro modo. Em alguns países com menos recursos do que Angola ainda se faz o recenseamento manual dos eleitores e publicam-se as listas com os nomes nas paredes e nas árvores das aldeias. Em 1994 foi assim que vi o processo desenrolar-se na Guiné-Bissau e ainda hoje, por falta de uma base de dados permanente e actualizável, ainda se tem de recorrer a sucessivos registos de raiz, começando tudo de novo em cada nova eleição. Angola já usa processos avançados de registo e de comunicação rápida desde 1992, sendo dos países que despendem verbas altíssimas para garantir essa qualidade do processo eleitoral. No entanto, o trabalho manual, seja de registo, seja de contagem de eleitores e de votos, é muito mais fácil de ser compreendido e de ser observado, ainda que demore muito mais tempo, e não estar isento de muitos erros como acontece com todas as actividades humanas. Tal como os telefones de última geração, hoje ninguém pode dispensar os meios electrónicos na execução do processo eleitoral. Mas como tudo se aprende, é preciso explicar muito bem aos actores políticos e aos líderes sociais o funcionamento dessas inovações que são introduzidas para melhorar a eficácia e a eficiência dos processos eleitorais e não para enganar como muitas vezes somos induzidos a pensar.

O que concretamente pode ser feito para dissipar as dúvidas persistentes e reincidentes em cada eleição, reforçadas agora pelo recebimento do primeiro material eleitoral fornecido pela INDRA, a mesma fornecedora das eleições anteriores?

É tudo uma questão de esclarecimento, como disse. Quando se adquire um determinado equipamento ou uma solução tecnológica, ela vem sempre acompanhada de um manual de instruções que permite ao utilizador aceder à compreensão do mecanismo, às suas funcionalidades e dominar os seus aspectos principais. É esta explicação que deve ser dada a todos os interessados no processo eleitoral, desde logo os partidos políticos, mas também as organizações da sociedade civil, as igrejas, sem esquecer as representações da comunidade internacional. No caso do material fornecido para as eleições, ainda que já tenha sido utilizado material similar em eleições anteriores, há sempre novidades, melhorias no sistema que merecem uma demonstração para uma boa compreensão do sistema que vai ser utilizado. Todas as explicações deverão ser dadas pelos técnicos e especialistas contratados pela CNE, independentemente das auditorias que venham a ser efectuadas, cuja contribuição para a criação da confiança é sempre muito mais cara e nem sempre tão eficiente. O que não pode admitir-se é que fique a pairar a ideia de que há qualquer possibilidade de causa e efeito entre o dito material ou tecnologia e a desvirtuação do sentido de voto dos eleitores.

Em seu entender quais são as principais questões a colocar relativas ao material a utilizar?

As pessoas têm dúvidas sobre tudo, porque são levadas a acreditar que o material, por ser tão avançado, tão sofisticado, tão impenetrável ao comum dos mortais, pode ser usado para manipular o resultado de uma votação. Por isso, a CNE deveria promover demonstrações a começar por como os eleitores podem aceder à base de dados para saberem onde vão votar. Demonstrações desta funcionalidade, feitas pelo País a fora, com audiência dos actores políticos e da comunicação social, concorrem para a maior confiança no processo. Depois, também os Partidos Políticos vão receber cópias digitalizadas dos cadernos eleitorais correspondentes a todas as mesas e assembleias de Voto. Quando isto acontecer, deve ser também facultada uma demonstração dessa funcionalidade do sistema. A própria contagem de votos de uma mesa pode ser mostrada e explicada, bem como a elaboração da acta-síntese da assembleia de voto. Tal como deve ser explicado o papel dos delegados de lista de cada partido ou coligação para a veracidade dos actos eleitorais, sejam eles a votação, a contagem dos votos e a sua expressão documental em acta.

Até que ponto os delegados de lista desempenham um papel efectivo nas eleições?

Eu insisto sempre na importância dos delegados de lista não porque espere que eles detectem irregularidades e fraudes nos actos eleitorais, mas para que as pessoas tenham boas razões para acreditar que não será fácil cometer actos proibidos no processo eleitoral. Se pensarmos nisto compreenderemos que todas as dúvidas que se levantam contra o material eleitoral e a solução tecnológica de apuramento de votos se desvanecem. Se numa mesa de voto estiver um delegado de lista, ele vai poder verificar, desde a abertura das urnas, que elas estão vazias, vai poder conferir os maços de boletins de voto que vão ser utilizados, pode inspeccionar as cabines de voto e verificar como cada eleitor exerce livremente o seu direito de voto. Vai ainda poder controlar o encerramento da votação, o fecho das urnas, assistir à retirada dos boletins de dentro das urnas e à sua contagem, bem como à elaboração da respectiva acta das operações eleitorais, podendo apresentar reclamações a qualquer momento de todo esse processo. É ainda preciso esclarecer que o delegado de lista da mesa n.º 1 de qualquer assembleia de voto com mais de uma mesa deve poder acompanhar e verificar a elaboração da respectiva acta-síntese que englobará os dados de todas as mesas de voto de uma assembleia de voto, devendo assiná-la em sinal de concordância com o seu conteúdo e ficando com uma cópia para o seu partido ou coligação.

Como se explica, então, que com todas essas garantias haja sempre tantas reclamações e recursos que chegam ao Tribunal Constitucional pondo em dúvida a verdade dos resultados eleitorais?

A verdade é que este sistema eleitoral de "checks and balances" ou de contrapesos, embora previsto na lei, depende da capacidade dos partidos políticos para o colocar em acção. O ideal seria que os partidos políticos tivessem um delegado de lista em cada mesa de voto ou, pelo menos, em cada mesa n.º 1 de cada assembleia de voto cujo presidente tem a função de elaborar a acta-síntese dos resultados de todas as mesas de uma assembleia de voto. É aqui que o controlo dos partidos políticos tem todo o seu significado e não junto do Centro de Apuramento Nacional, que é um trabalho electrónico de soma dos resultados de todas as actas-síntese, por círculo provincial e pelo círculo nacional, onde os representantes dos partidos não têm nem podem ter qualquer interferência. Se o apuramento nacional é feito com base nas actas das assembleias de aoto, é no conteúdo destas actas que os partidos políticos se devem concentrar. Reclamações e recursos desligados dos dados constantes das actas das operações eleitorais e da acta-síntese da assembleia de voto, apenas baseados em percepções e expectativas contrariadas, dificilmente terão sucesso no Tribunal Constitucional.

Quer dizer que, se houver uma cobertura insuficiente de delegados de lista, as garantias da veracidade eleitoral ficam diminuídas?

O que certamente fica diminuída é a capacidade de os partidos políticos reclamarem seja do que for. A lei só permite reclamações e recursos baseados em reclamações apresentadas no decurso dos actos eleitorais, seja durante a votação, seja durante a contagem dos votos, seja na elaboração da acta da assembleia de voto.

Que conselho daria para que essa situação possa ser mais eficiente?

Eu participei em processos eleitorais em vários países, quase sempre como Conselheiro Eleitoral, e nessa qualidade promovi a realização de cursos de formação para os delegados de lista. Elaborei um manual que os representantes dos partidos políticos concorrentes poderiam ter à mão para melhor executar as suas funções. Acontece que o recrutamento e a formação de todo este pessoal é sempre muito complexo e custoso e talvez por isso se deixa para a última hora, como se não fosse uma das mais importantes de todo o processo. Não só porque só eles podem reclamar de qualquer irregularidade, como são, no final, portadores da cópia da acta de cada assembleia de voto que vai ser uma parcela dos resultados a processar no Centro Nacional de Apuramento dos Votos.

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