O Instituto Nacional da Criança já veio a público denunciar e chamar a atenção das famílias de que é preciso proceder de acordo com os marcos definidos pelo Código da Família.

A denúncia foi feita recentemente pela directora do Instituto Nacional da Crianças (INAC), Ruth Mixinge. Uma situação que, além de pôr em causa pressupostos legais atinentes ao superior interesse da criança, poderá constituir um mau indicador, assim como, em tese, acarretar males maiores, como apurou o Novo Jornal. Tudo isto a julgar pelos dados que têm sido divulgados nos últimos anos sobre um crescente rapto e tráfico de crianças.

O histórico de raptos

Em 2006, este mesmo instituto havia apontado a província do Cunene como o epicentro de tráfico de menores no país, funcionando como a "porta de saída" de crianças angolanas através da fronteira com a Namíbia. Trabalho esforçado e a exploração sexual tinham sido apontados, na altura, como as principais actividades de que eram submetidas as crianças que caíam na rede do tráfico.

Nessa altura, a então chefe do gabinete de estudos e investigação do INAC, Maria Coelho, disse à Rádio Ecclésia, que a situação era extensiva a outras zonas fronteiriças do país, nomeadamente Cabinda, Lundas Norte e Sul, Moxico, Kuando Kubango e Huíla.

As investigações tinham esses locais referenciados e era sobre eles que continuariam a incidir, além de remontar a esse período a criação de uma comissão contra o rapto e tráfico de crianças, cujos resultados nunca foram conhecidos.

Interesses a salvaguardar

Ruth Muxinge, actual responsável pelo órgão tutelar da criança, que recentemente analisou, na Emissora Católica, a situação das famílias que cuidam de crianças sem cumprir os pressupostos legais, esclareceu que o assunto requer duas abordagens: uma que decorre da necessidade de a criança ser protegida num dado momento e contexto, a outra, sobre a necessidade de o pressuposto legal ser acessível e conhecido pelas pessoas.

"Há famílias que estão a cuidar de crianças, mas que não conhecem os pressupostos legais que devem ser obedecidos. Por outro lado, também há uma criança que precisa urgentemente de uma família, que a proteja, que cuide e que vele por ela. No superior interesse da criança, temos que balancear os dois casos", salvaguardou Ruth Mixinge.

INAC sensibiliza famílias

Como consequência desse desconhecimento dos procedimentos legais, o INAC, anotou a directora, está a fazer reflexões à volta do que falta para que tais pressupostos sejam conhecidos por todos, bem como encontrar mecanismos a utilizar para divulgar os instrumentos legais existentes.

Por outro lado, segundo a responsável, encontrar acções que devem ser postas em prática para que as famílias que já estão a cuidar de crianças e não estão em situação legal, as possam utilizar, em nome do superior interesse da criança.

A adopção ilegal

O Novo Jornal ouviu o jurista Esteves Cambundo sobre a matéria tendo este referido que "em caso de violação ou inobservância do formalismo legal, a pessoa denunciada, desde que se verifiquem os elementos necessários da infracção, pode ser indiciado na práticade um ilícito criminal, tipificado nos artigos 342.º e seguintes do Código Penal, que prevê e pune os crimes de subtracção e ocultação de menores".

De acordo com o jurista, ainda que não exista denúncia, desde que haja indícios de cometimento das infracções penais previstas, e desde que a polícia ou os órgãos de investigação criminal tomem conhecimento, deve-se desencadear o necessário procedimento contra o infractor. "Por estar em causa direitos da criança, naturalmente, o Estado tem todo o interesse em protegê-las, protecção esta que só é possível com a colaboração de todos os membros da sociedade, que devem estar sensibilizados a denunciar todo e qualquer acto de violação de direitos e interesses fundamentais da criança", alertou.

O processo de adopção

Segundo Esteves Cambundo, o processo de adopção em Angola difere consoante a nacionalidade do adoptante, se é nacional ou estrangeiro. Em relação ao nacional, este deve requerer à Sala de Família do Tribunal Provincial, nos termos do n.º 1 do artigo 212.º do Código da Família, que prevê que a adopção é constituída por sentença judicial. Ao passo que para o adoptante estrangeiro, esta adopção deve ser requerida à Assembleia Nacional.

Contudo, acrescentou o jurista, a adopção de menores por nacionais implica ainda a observância de determinados factores, conforme o ordenamento jurídico, nomeadamente ter completado 25 anos e estar em pleno gozo dos seus direitos civis, possuir idoneidade moral e bom comportamento social, especialmente nas relações familiares, capacidade económica para prover ao sustento e educação do adoptando, saúde mental e física, e ter, pelo menos, mais 16 anos que o adoptando.

"Estes requisitos são cumulativos, ou seja, devem verificar-se necessariamente todos, sob pena de indeferimento do pedido de adopção. Em relação ao adoptando, o mesmo deve ser filho de pais desconhecidos ou falecidos, e estar na situação de abandono, estando ou não entregue a um estabelecimento de assistência pública", esclareceu Esteves Cambundo.

O que diz o Código Penal?

Segundo o jurista, o Código Penal angolano vigente não prevê a adopção ilegal como um tipo de crime como tal. "Todavia, se a pessoa que tem a guarda da criança incorrer na prática dos actos previstos em alguns dos tipos descritos nos artigos 342.º e seguintes do Código Penal, poderá ser responsabilizado, tratando- se, por exemplo do crime de subtracção violenta ou fraudulenta de menor, arrisca-se a ser punido com a pena extraída da moldura de dois a oito anos de prisão maior", sustentou.

Mecanismos a adoptar

Esteves Cambundo acredita que, mais do que criminalizar a conduta de quem está à margem da lei ou mesmo agravar as penas, o principal mecanismo a adoptar pelo Estado seria o da educação constante das pessoas, a partir das escolas, programas televisivos, radiofónicos e outros, chamando à razão toda a sociedade, de maneira que se esclareça que sem a criança não pode haver continuação da própria sociedade.

"Se houver fortes indícios de cometimento de crime, recomenda-se a denúncia imediata às autoridades competentes. Se não houver, recomenda-se o aconselhamento da pessoa que tiver a guarda da criança para que formalize, juntos das instâncias competentes, o processo de adopção. Acima de tudo, deve prevalecer a melhor protecção da criança.

Pois, a adopção visa, exactamente, a protecção social, moral e efectiva do menor", lembrou o jurista, acrescentando que o ordenamento jurídico angolano prevê que os crimes cometidos contra os menores sejam puníveis com penas de prisão maior, o que significa dizer que são crimes públicos. "O procedimento criminal contra a pessoa indiciada pode ter lugar independentemente de denúncia, isto é, as autoridades, desde que tenham conhecimento de fortes indícios, podem despoletar o processo-crime", concluiu.