Há relatos de magistrados que chegaram mesmo a ser agredidos verbalmente por populares e familiares de prevaricadores, que alegam questões culturais e tradicionais.

Sob anonimato, alguns magistrados judiciais e do Ministério Público, descreveram ao Novo Jornal esta realidade que opõe a matriz tradicional e os direitos fundamentais.

Segundo estes magistrados, após a recepção de denúncias e da detenção de acusados, por fortes indícios de agressão sexual contra crianças, muitas famílias e povos chegam a inviabilizar a acção da justiça por entenderem não ser crime à luz da sua cultura e tradições.

Em algumas regiões, vários magistrados chegaram a ser agredidos verbalmente por autoridades tradicionais, com apoio popular, por fazerem cumprir o direito positivo.

Há zonas em que as autoridades tradicionais se insurgem contra a figura do juiz de garantias quando este aplica a medida de prisão preventiva para o abusador sexual, por entenderem que questões deste género devem ser resolvidas na matriz tradicional.

"Quase cheguei a ser apedrejado pela população por conduzir um soba (autoridade tradicional) à cadeia por abusar de três menores da sua família ao ponto de as engravidar", contou um juiz de garantias ao Novo Jornal.

Outro revelou que sofreu ameaças e que a população quase invadiu a instituição policial por deter um abusador que é uma autoridade tradicional influente numa região da Cunene.

"Chegam mesmo ao ponto de reunir toda a aldeia para enfrentar a autoridade do Estado por entenderem que é normal uma menor ser forçosamente mulher de um adulto", contou o magistrado do MP.

Segundo os magistrados, em algumas culturas, o "éfiko", também conhecido por "fiko", um ritual que marca a celebração da maturidade feminina, é invocada pelas autoridades tradicionais para defender que não há violação contra a menor por esta estar supostamente preparada para responsabilidade feminina.

Ao Novo jornal, os magistrados asseguram que estão com dificuldades de instruir processos-crime de abuso sexual contra menores em algumas zonas da região sul por conta de muitas famílias e culturas não aceitarem submeter-se ao direito positivo, por questões tradicionais, e revelam que muitas inibem a acção da justiça.

Recentemente, o Conselho Superior da Magistratura (CSMJ) recebeu informações dos tribunais de comarcas do País, que afirmam que fora das sedes das comarcas das províncias, praticamente não existem processos porque as vítimas não participam os actos de abusos sexuais porque preferem resolver o problema familiarmente e com as autoridades tradicionais.

Correia Bartolomeu, porta-voz do CSMJ, disse aos jornalistas que o número de processos no País é muito inferior às queixas do Instituto Nacional da Criança (INAC) e dos órgãos policiais.

Segundo alguns magistrados, há famílias e povos, sobretudo nas províncias do Kuando Kubango, Cunene, Huíla e Namibe, que preferem não apresentar queixa, e quando apresentam querem que o assunto seja resolvido no fórum tradicional, por entenderem ser cultural.

Entretanto, alguns juristas, ouvidos pelo Novo Jornal, defendem que os magistrados não se devem inibir por culturas e tradições, mas aplicar a Lei.

Hélder Chihuto, jurista, disse que a Constituição da República prevê que sejam punidos todos os infratores e que os magistrados não podem sentir-se inibidos de dar provimento ao processo contra um indivíduo que abusou sexualmente de uma criança.

"Em algumas regiões esta prática não é crime à luz do direito costumeiro, mas é crime à luz do direito positivo. E essas pessoas que estão a afrontar as autoridades judiciárias incorrerem em crimes, ou são cúmplices, ou encobridores. E aí podem ser arrolados no processo-crime", explicou.

Segundo Hélder Chihuto, este desrespeito não é somente na região sul do País, mas quase em todo o lado e apela às autoridades para protegerem as crianças dentre e fora do lar.

Para Hélder Chihuto, é preciso que outros autores da sociedade vejam com preocupação essa situação, para a desconstrução da mentalidade a nível destas culturas.

Conforme este jurista, os magistrados nunca devem recuar por conta do poder tradicional, sob pena de perderem a autoridade.

Carlos Cabaça, outro jurista, contou que esse conflito existe de facto, mas realça que violação sexual contra crianças é crime, mesmo com o "consentimento" da menor.

Segundo este jurista, na região sul de Angola o poder tradicional tem muita força, mas isso não pode limitar o juiz de fazer o seu trabalho que é obedecer à lei.

"Os magistrados devem conduzir a instrução dos processos e julgá-los sem hesitação pelo facto de estarem numa zona em que a tradição é muito forte", assegurou.

Quanto às revoltas populares por conta da tradição, Carlos Cabaça disse que nunca a justiça deve recuar e encoraja os magistrados na aplicação da lei.

"O direito moderno está sempre acima das nossas tradições e culturas! Por isso é que a lei é igual para todos e ninguém está acima de ninguém", concluiu.

Importa lembrar que o exercício do poder tradicional em Angola é uma forma de poder político que não põe em causa o carácter unitário do Estado (nos termos dos artigos 3.º e 8.º da Constituição da República).