JES, o "falador sem fala", foi como o seu amigo, contemporâneo e seu antigo chefe de gabinete no MIREX. O embaixador Garcia Bires disse que passou a ser chamado pelos amigos ainda nos tempos de estudantes na ex-URSS depois de resolver um impasse que tinha com o colega Fernando Assis. Mas é, sobretudo, a humanização do mito que é feita através de testemunhos de colegas e contemporâneos que partilhamos com os leitores nesta edição especial.
JES falava pouco porque sabia ouvir. Tinha mais disponibilidade e sensibilidade para ouvir do que falar. Se para uns isso criava algumas reservas, para outros gerava respeito e empatia. A sua disciplina, método, cultura de compromisso, organização e inteligência foram fundamentais no exercício e desempenho dos diferentes cargos que exerceu em vida. Esses testemunhos e partilhas de experiências de quem privou durante anos com JES são de uma importância histórica. É o lado humano, o lado mais sensível e frágil do estadista que é elevado ao estatuto de mito e que, por via disso, é como que obrigado a abdicar de toda e qualquer humanidade. São também estórias que a História tece para, a partir do passado, se conhecer o presente e preservar o futuro. Os tabus, as reservas sobre a vida política e privada e certo "endeusamento" fizeram com que muito pouco se soubesse de JES, tirando aquilo que se achava conveniente saber e que quase nada se escrevesse sobre ele, nem o próprio terá aproveitado os últimos anos de vida para nos "presentear" com uma biografia sua.
Este circo mediático "pos mortem" e batalhas legais sobre o local de enterro de JES impõem-nos uma reflexão sobre o exercício de poder, sentido de Estado e relações interfamiliares. Tem vindo a revelar aquele que, na realidade, era o lado mais sensível e frágil de JES, a família. Uma família poderosa, mas desestruturada. Nas últimas décadas de poder, procurou ser um "bónus pater famílias" e compensar as ausências dos filhos benesses, luxos e favorecimentos.
A estratégia de exposição dos filhos, a introdução dos mesmos na máquina partidária, o acesso privilegiado a cargos públicos e aos negócios com o Estado foi algo que o condicionou politicamente e que mais tarde o viria a fragilizar do ponto de vista psíquico e emocional. Foi também para proteger alguns dos filhos, que não saiu quando devia e se deixou ficar; foi pelos privilégios de nascimento que os filhos se tornaram milionários e chegaram ao topo de importantes cargos públicos e até obter prioridades nos negócios com o Estado. E foi por via dos filhos que acabou por ser afectado, prejudicado e esvaziado quando deixou o poder.
Eles foram o seu bónus quando tinha poder e foram o seu ónus quando deixou de o ter. E mesmo depois de morto, é com os filhos de JES que o Estado iniciou um processo negocial que tem fracassado e que já tem os tribunais espanhóis como próximo destino. É que, mesmo depois desta batalha com o Estado, o que se antevê é que, depois de JES ser enterrado, vamos acompanhar com muita tristeza uma batalha legal entre irmãos e entre a viúva Ana Paula dos Santos e enteados.
O lavar de roupa suja em praça pública já teve o seu início, e o espectáculo segue com as cenas dos próximos capítulos. O Estado, em determinado momento, deixou de agir com sentido de Estado, elevação e discrição. Deixou-se alinhar pelo jogo mediático, no sentido de ganhar espaço e não perder a pedalada. Faltou estratégia e capacidade de antecipar cenários. Este caso tem sido um exemplo de como o Estado deve aprimorar a sua comunicação e ter uma estratégia de gestão de crises. Como ente de bem, não é digno o Estado usar a sua máquina de comunicação para promover manipulação e desinformação.
O MPLA também revelou inércia e incapacidade de abordar e questionar o seu líder sobre um silêncio conivente e uma estratégia de tirar mérito ao seu Presidente Emérito. Em todo este processo, não se sentiu o partido que, em momento algum, agiu e que apenas reagiu após a notícia da morte de JES. Mas, isso deixou estampado algo muito mais grave: O MPLA está a atravessar uma crise de ausência de figuras que se assumam e sejam reconhecidas como verdadeiras reservas políticas e morais.