Sendo o único Chefe de Estado de um país da NATO, a organização militar liderada pelos EUA que está a servir de plataforma ocidental para apoiar a Ucrânia na guerra contra a Rússia, a manter contactos regulares com Vladimir Putin, além das questões bilaterais e o assunto mediático mais evidente, que é o acordo dos cereais do Mar Negro, Erdogan foi à Rússia também como "enviado" de Washington para saber o que está na "mente" do Kremlin sobre o conflito no leste europeu.

O resultado, embora sem muitos pormenores, começa agora a ser conhecido, com Recep Erdogan a regressar a Ancara com más notícias para o ocidente e para a Ucrânia, porque, como está a ser revelado esta quarta-feira, 06, por diversos canais nas redes sociais com acesso privilegiado à "intelligentsia" russa, a direcção que Putin lhe indicou foi que nada irá travar as forças da Federação até serem alcançados todos os objectivos traçados para a guerra na Ucrânia.

Esses objectivos são conhecidos, que é a aceitação por Kiev da anexação das cinco províncias, a Crimeia, as duas do Donbass, Lugansk e Donetsk, e ainda Kherson e Zaporizhia, a desnazificação do regime ucraniano, vincado pela relevância de organizações reconhecidas unanimamente como de raiz nazis-fascistas, como a "Ala Direita" ou o Batalhão Azov, e ainda a neutralidade ucraniana que é exigida por Moscovo na forma de não adesão à NATO em nenhuma circunstância.

A estas exigências, o Presidente Volodymyr Zelensky tem repetido exaustivamente que não têm qualquer valor em Kiev, e que a guerra só terminará depois da expulsão do último soldado russo dos territórios ucranianos reconhecidos internacionalmente desde 1991, ano da independência do país face à então União Soviética.

O que disse Erdogan aos aliados da NATO?

Ou seja, o que Erdogan terá dito na conversa telefónica que manteve com os homólogos ocidentais assim que regressou da Rússia é que Vladimir Putin está de pedra e cal na sua "operação militar especial" na Ucrânia e que só dará ordem de cessação das hostilidades quando os objectivos estiverem cumpridos.

Face a isto, de Washington voou para Kiev o chefe da diplomacia norte-americana, o Secretário de Estado, Antony Blinken, embora sem que tenha sido conhecida a agenda desta visita previamente, porque ela terá sido desenhada em cima do joelho e motivada pela conversa menos produtiva na acepção ocidental de Erdogan com Putin.

Sabe-se que o próprio Erdogan desvendou ligeiramente a vontade ocidental quando disse, na conferência de imprensa que se seguiu ao encontro com o Presidente russo, que a Ucrânia tem de ser mais flexível na forma como encara algumas das questões determinantes para se encontrarem soluções no contexto deste conflito.

O que vai dizer Blinken a Zelensky, embora não esteja certo que esta deslocação tem lugar esta quarta-feira, ou se será nos próximos dias, podendo mesmo ser por telefone, é impossível de saber, mas algumas fontes com registo de obtenção de informação sólida sobre os meandros desta guerra, apontam como mais seguro que o chefe da diplomacia norte-americana vai avisar Kiev para a necessidade de serem feitos esforços para aguantar uma guerra muito longa e sem previsão de um epílogo, excepto se Kiev estiver na disposição para "flexibilizar" as suas posições.

Provavelmente Blinken dirá igualmente a Zelensky que tanto nos EUA como na Europa ocidental, a disponibilidade política para manter o fluxo de apoio em dinheiro e armamento verificado nestes 18 meses de guerra tenderá a diminuir com o tempo e ainda mais face à crise económica histórica que atinge europeus e o aproximar das eleições Presidenciais norte-americanas, onde cada vez menos pessoas apoiam esse apoio ilimitado a Kiev, como o demonstram as últimas sondagens a esse respeito.

Um xadrez mundial complexo

Mas esta triangulação de contactos nas alta instâncias, Putin-Erdogan, depois a questão de Blinken em Kiev, apesar de nada estar ainda confirmado, e a igualmente hipotética deslocação do Presidente da Coreia do Norte, Kim Jong-Un, à Rússia, para se encontrar com Putin em Vladivostok, cidade do extremo oriente russo, e ainda a recente confirmação de nem o chefe do Kremlin nem o Presidente chinês, Xi Jinping, estarão na reunião do G20 deste fim de semana em Nova Deli, na Índia, podem ter outro significado: que tanto norte-americanos e europeus como russos e chineses estão-se a preparar para esticar a corda em diversas latitudes.

Isto, tendo como pano de fundo os dois grandes polos de conflitualidade entre estes blocos, desde logo na Ásia, com a questão de Taiwan no topo da perigosidade, e no leste europeu, onde a guerra entre a Rússia e a Ucrânia parece estar para durar mais alguns invernos.

E é aqui que emerge como relevante a possível visita de Kim Jong-Un à Rússia, que poderá servir dois propósitos, embora esta esteja por confirmar, sendo a única fonte até aqui que a confirmou, The New York Times, o jornal norte-americano mais usado pela intelligentsia do Pentagono para contra-informação.

O primeiro propósito poderá ser aumentar a capacidade russa de armazenar munições e peças de artilharia ligeira; e o segundo é que tanto a chineses como a russos serve na perfeição a costumeira impetuosidade de Pyongyang, por exemplo, com os seus lançamentos de misseis imprevistos, para manter o Japão e a Coreia do Sul, aliados dos EUA e da Ucrânia, em permanente sobressalto com menor disponibilidade para apoiar terceiros.

A III Guerra Mundial?

Sobre um eventual recrudescer da tensão entre EUA e os seus "inimigos", a Rússia e a China, usando territórios terceiros para descarregar alguma fúria contida, como é o caso da Ucrânia e Taiwan, um sinal inquietante veio de Kiev, onde o chefe do Conselho Nacional de Segurança, leksei Danilov, que é um dos principais e mais pr+oximos conselheiros de Zelensky, diz que a 3ª Guerra Mundial já começou.

"Se alguém pensa que a III Guerra Mundial anda não começou, está muito enganado. Jà começou e só não vê quem não quer. Tem estado numa fase hibrida e está agora a entra numa nova e activa etapa", disse Danilov numa conferência sobre segurança na capital ucraniana.

Dificilmente as palavras de Danilov são vistas de forma simples, porque se tem revelado como um dos maiores ficcionistas da propaganda ucraniana, mas é verdade que em Kiev têm sido muitos os esforços para provocar a entrada da NATO na guerra com a Rússia, o que tanto russos como ucranianos, com ambos os Presidentes, Putin e Joe Biden a concordar com essa tese, consideram que seria o início de um inevitável Armagedão nuclear.

Se a mais emblemática tentativa de provocar uma guerra directa entre EUA/NATO e a Rússia foi conduzida pelo Presidente ucraniano quando, no início do conflito, se desmultiplicou em esforços para garantir que a NATO protegia os céus ucranianos, estabelecendo uma zona de exclusão aérea, ou "no fly zone", a última aconteceu já esta semana.

E isso aconteceu quando, na segunda-feira, a Rússia atacou o porto ucraniano de Izmail, próximo à fronteira com a Roménia, um país da NATO, na outra margem do Rio Danúbio, e os ucranianos publicaram repetidamente relatos de que drones russos explodiram em solo romeno, obrigando o próprio governo de Bucareste a vir a público desmentir categoricamente as informações do seu aliado ucraniano.

Enquanto esta troca de "tiros" de artilharia diplomática e política cria cada vez mais ruído em todo o mundo, no terreno, todos os dias morrem milhares de homens e mulheres nas trincheiras de um lado e do outro, sem que se note especial vontade entre os antagonistas directos e os seus mais próximos aliados uma vontade substantiva de acabar com a carnificina.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.