O Governo somali considera uma intromissão insustentável nos assuntos internos do país por parte do Governo etíope que assinou um acordo com o Governo secessionista da Somalilândia para ter acesso privilegiado a um porto marítimo daquela região.
Na perspectiva somali, a Somalilândia, antiga Somália Britânica, é uma região rebelde, enquanto localmente se considera país independente, desde 1991, data em que foi declarada a independência, unilateralmente, sem qualquer reconhecimento oficial pela comunidade internacional.
O acordo assinado pelo Governo etíope, do primeiro-ministro Abiy Ahmed Ali, com a Somalilândia, liderada pelo Presidente Musa Bihi Abdi, provocou uma reacção tempestuosa em Mogadíscio, cujo Governo do Presidente Hassan Sheikh Mohamud garantiu ir combater por "todos os meios legais existentes".
Esta situação de forte tensão surge 45 anos depois do fim da denominada Guerra de Ogaden, iniciada com a invasão somali à região etíope com o mesmo nome, e que durou quase dois anos, com milhares de mortos pelo meio, tendo sido a então União Soviética que interveio pondo-se ao lado de Adis Abeba, o que permitiu o envio por parte de Cuba de Fidel Castro de milhares de tropas, conseguindo o líder cubano a sua segunda vitória em África, após a intervenção em Angola que terminou em 1991.
Mas é outro o contexto em que o Egipto aparece neste diferendo entre somalis e etíopes.
O Egipto e a Etiópia vivem uma crise profunda devido aos interesses vitais que são postos em causa com a construção da Grande Barragem do Renascimento Etíope, num dos braços do Rio Nilo, o Nilo Azul, nas montanhas da Etiópia, a veia de água que atravessa o deserto do Saara e permite ao Egipto ser um grande país agrícola há milhares de anos.
Depois de atravessar as montanhas etíopes, o Nilo Azul vai-se juntar ao Nilo Branco na capital sudanesa, Cartum, partindo daí como Rio Nilo para atravessar o Egipto, sendo vital tanto para o Sudão como para o Egipto.
A Grande Barragem do Renascimento Etíope começou a ser construída há mais de uma década (ver links em baixo nesta página) e está desde então no centro de uma acesa troca de acusações envolvendo os três países, a Etiópia, o Sudão e o Egipto, os dois últimos receosos de que a represa, uma das maiores do mundo e a maior de África - mais de 5 mil milhões USD já ali foram gasto, estando prestes a ficar concluída -, acabe por reduzir o caudal que chega às suas ressequidas terras áridas e semi-áridas.
O risco de um conflito de grande envergadura é de tal monta que as grandes potências com interesses nesta região de África, EUA, Rússia e China, integram a task force criada pelas Nações Unidas para mediar as negociações entre o Cairo, Cartum e Adis Abeba.
A desconfiança manifestada pelos egípcios e os sudaneses quanto à palavra etíope é que em Adis Abeba, Abiy Ahmed Ali, ao mesmo tempo que se compromete com a manutenção do caudal no Nilo Azul, recorda que esta infra-estrutura é a esperança dos mais de 110 milhões de etíopes em terem acesso, finalmente, não só à energia eléctrica que falta em mais de metade do país, como permite alavancar fortemente a agricultura etíope como a indústria e o investimento externo, o que deixa pouca margem para manter os actuais níveis a jusante.
E é neste contexto de enorme melindre que o Egipto resolveu deixar a sua neutralidade estratégica para se colocar ao lado da Somália, contra o acordo assinado pela Etiópia e a região rebelde da Somalilândia, para aceder aos seus portos marítimos, desencavando a interioridade etíope, o segundo pais mais populoso do continente, em franco desenvolvimento e que acaba de entrar oficialmente, a 01 de Janeiro, nos BRICS, organização que juntava, inicialmente, Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul, e que, só em África, viu-lhe acrescentados dois países, com o Egipto.
E foi com este cenário delicado que o Presidente egípcio, Abdul Fattah al-Sisi, não vacilou em vir a público dizer que está ao lado da Somália na disputa com a Etiópia, não sendo esse facto de somenos considerando que o Egipto e a Etiópia são, de longe, as duas grandes potências militares da região nordeste do continente africano, além dos mais populosos.
"O Egipto vai manter-se firmemente ao lado da Somália e apoiar a sua segurança e estabilidade", disse al-Sisi ao seu homólogo somali, Hassan Mohamud, numa conversa telefónica tornada pública pelo Cairo, o que é um claro sinal de aviso para Afis Abeba da solidez do apoio do Egipto a Mogadíscio.
A par destas movimentações, segundo a imprensa egípcia, o Governo somali chamou o seu embaixador na Etiópia para consultas e enviou um forte apelo às organizações pan-africanas e internacionais para pressionarem Abiy Ahmed a abandonar as suas pretensões e projectos de acesso ao Mar Vermelho.
Numa primeira reacção, a União Europeia pediu à Etiópia, país que acaba de viver uma longa guerra civil depois da sublevação de forças rebeldes de Tigray (ver links em baixo nesta página), que não viole a integridade territorial da Somália. As posições da China, Rússia e EUA ainda não eram conhecidas esta tarde de quarta-feira, 03, mas são fundamentais para se perceber como poderá evoluir mais esta crise no Corno de África.