Embora seja praticamente nula a informação oficial sobre o conteúdo da proposta que João Lourenço elaborou, ao que tudo indica em estreita sintonia com o Presidente sul-africano, Ciryl Ramaphosa, que esteve em Luanda na passada semana, é já claro que nela muitos depositam uma derradeira expectativa de pacificação regional.
O apaziguamento definitivo entre Kigali e Kinshasa está a ser tentado há anos, incluindo com o envio de contingentes militares robustos pelos países africanos mais empenhados neste processo para estancar a actividade do M23, o grupo de guerrilha apoiado pelo Ruanda, assim o confirma a ONU, mas até agora sem qualquer sucesso sustentável.
Também os EUA têm um claro interesse neste conflito, como ficou claro nas múltiplas iniciativas desenvolvidas nesse sentido pelo chefe da diplomacia de Washington, Antony Blinken, ao longo dos últimos três anos incluindo visitas oficiais aos países da região, RDC, Ruanda e também Angola...
No cerne desta montanha-russa diplomática está João Lourenço, em quem a União Africana e as organizações regionais directamente linkadas aos Grandes Lagos depositam total confiança para conduzir os beligerantes à razão.
Nem os media angolanos, nem os congoleses, ou mesmo ruandeses e sul-africanos conseguiram colher dados sobre a proposta de paz para o leste da RDC arquitectada pelo Chefe de Estado angolano, mas é claro que se trata de algo novo e ousado pela forma como se estão a movimentar as principais peças deste xadrez.
Há apenas declarações dos chefes das diplomacias congolesa, Thérèse Kayikwamba Wagner, e angolana, Téte António, em Kinshasa, no âmbito do encontro entre os dois Presidentes, que se aproximam de forma evidente dos objectivos óbvios: a eficácia de um mecanismo de verificação no terreno que deve acompanhar a cessão total das hostilidades de forma a que a desconfiança não tenha espaço para reemergir. (ver links em baixo nesta página)
Esse plano/proposta contou, como indica a sua presença em Luanda antes de Lourenço seguir para Kigali e Kinshasa, com a colaboração ou aquiescência do seu homólogo sul-africano, o Presidente Ramaphosa, o que permite concluir que há uma frente austral que pretende liderar esse processo face aos esforços igualmente existentes do lado oriental liderados pelo Quénia e Uganda.
Frutos da aproximação a Washington
O que distingue este momento de outros no passado, onde, por exemplo, o Presidente ruandês Paul Kagame, recentemente reeleito com mais de 99% dos votos, já se tinha comprometido e vacilou a partilhar os esforços com João Lourenço para conduzir o M23 ao fim das hostilidades, é que, provavelmente, João Lourenço, além de contar com a rede proporcionada pela União Africana, conta ainda com a confiança de Washington neste processo, graças à recente aproximação de Angola aos Estados Unidos.
Ou seja, quando Paul Kagame está agora a falar com João Lourenço, como sucedeu em Kigali à margem da sua tomada de posse, no passado Domingo, pouca diferença fará, neste particular, de estar a falar com Washington, como, apesar do secretismo que envolve este xadrez diplomático, lhe terá sido transmitido pelo chefe da diplomacia norte-americana, Antony Blinken, desde que este esteve na região, no início do ano em Luanda, e em Kinshasa e Kigali em Agosto de 2022.
Entretanto, neste espaço temporal, como pode ser revisto no site do Departamento de Estado, Blinken falou ao telefone com o Presidente congolês Félix Tshisekedi e com o ruandês Paul Kagame, em Maio do ano passado.
Assoberbada com as frentes quentes na Ucrânia e no Médio Oriente, desde desde Fevereiro de 2022 e Outubro de 2023, respectivamente, a diplomacia americana, no que não é uma novidade histórica, delega a sua "voz" em parceiros regionais de confiança, o que tudo indica ser agora o caso de Angola, dando um peso extra ao que João Lourenço tem a dizer aos seus interlocutores, que, na verdade, já era bastante devido à confiança que recebeu da União Africana na qualidade de campeão da paz e estabilidade.
A questão essencial
O que é que a proposta de Lourenço oferece de novo a Tshisekedi e Kagame?
Para ser possível perceber essa mesma proposta, é preciso considerar o que está no centro dos graves desentendimentos enre Kinshasa e Kigali. E, sendo um assunto complexo e melindroso, é muito fácil de descrever: o Ruanda aproveita a instabilidade no leste da RDC para extrair minerais estratégicos como o coltão e o cobalto para os exportar como tendo sido retirados do seu subsolo.
Para manter este negócio florescente, como a ONU demonstra num relatório de 2021, e as tabelas das exportações ruandesas mostram, não existindo reservas conhecidas no seu território destes minerais estratégicos para as indústrias 2.0, o Ruanda apoia de forma camuflada os guerrilheiros do M23 que actuam com especial ênfase no Kivu Norte, o que Kigali nega desde o primeiro minuto...
Ora, como admitiu ao Novo Jornal um diplomata de carreira com dezenas de anos colocado em postos africanos, sempre que as questões que fomentam as hostilidades são de cariz económico, a solução pode ser difícil mas saber como o fazer é sempre o mais fácil.
É difícil porque é caro, e exige recursos que não abundam ou que os envolvidos não querem ou não podem libertar, mas se tal suceder, o caminho é simples, criar condições para que nenhuma das partes seja prejudicada em linha, ou perto disso, com a situação existente no momento das negociações.
E neste caso, não sendo garantido que assim seja, uma solução era Kinshasa e Kigali, com intermediação adequada, especialmente com capacidade financeira ou de mover influências para levar investidores privados a entrar no jogo, explorarem os recursos estratégicos no leste congolês com papeis bem definidos, enquanto concessionário e investidor/intermediário.
Tal solução pode ser fortemente incentivada pelos norte-americanos e aliados europeus, visto que a República Democrática do Congo é actualmente palco de uma disputa de gigantes pelos seus recursos naturais, com a China e a Rússia de um lado e EUA e europeus ocidentais do outro.
E Angola, que se apresta a ter uma ligação ferroviária de qualidade entre a RDC e o Atlântico, onde a União Europeia e os EUA estão a investir milhares de milhões de dólares, surge aqui como uma parte fortemente interessada em levar este processo de pacificação do leste congolês literalmente a bom... Porto do Lobito