A presença de milhares de pessoas nas ruas da capital burquinense, neste Domingo, teve como mote, mais uma vez, o apoio ao Governo do capitão Ibrahim Traoré, o líder da junta militar que liderou o golpe de 30 de Setembro, e a defesa da política de afastamento do país dos militares franceses que ali estão colocados desde 2018 para ajudar a combater os grupos de jihadistas no norte do Burquina Faso.
Os manifestantes pediam anda de forma abrasiva que o pais deixe de "obedecer" à antiga potência colonial, a França, que, através de uma complexa rede de suporte político-financeiro foi mantendo, desde a independência, uma influência importante na governação dos países da região, que constituem a denominada FranceAfrique.
Burquina Faso, Mali, República Centro-Africana e Guiné-Conacri são os quatros países desta parte do continente que liga o Sahel à África Ocidental que estão de forma acelerada a procurar libertar-se da influência de Paris, e onde ocorreram, nos últimos anos, golpes militares ou mudanças radicais de política externa, como na RCA.
Curiosamente, em todos estes países, assistiu-se a uma cada vez mais evidente presença de forças russas, ou com ligações a Moscovo, como é o caso do Grupo Wagner, uma empresa privada de soldados da fortuna que, na verdade, está a substituir os militares da "legião" francesa, bem como a consolidação da "cooperação" com Moscovo em detrimento da França.
Nesta manifestação, que surge num momento em que a França vai retirar os últimos 400 militares que ali se encontram, depois de o mesmo ter sucedido no Mali, a palavra de ordem mais ouvida foi "soberania total para o Burquina Faso", atirada para os microfones da imprensa internacional rodeada de centenas de bandeiras da Rússia, deixando claro qual a nova aposta de Ouagadougou no que diz respeito à cooperação internacional.
Uma das manifestantes no local, ouvida pela AfricaNews, a pan-africanista Fatime Nahor N'Gawara, disse que o povo burquinense tinha tomado a decisão de "assumir o seu destino nas suas mãos" e que não seria a "comunidade internacional a impedir que assim aconteça", sendo evidente um abrasivo sentimento antifrancês em todos os presentes nas ruas de Ouagadougou.
O Burquina Faso é o mais recente revês para a histórica presença e influência de Paris na FranceAfrique, onde um dos pilares mais salientes é a moeda comum da África Ocidental, de que o Burquina Faso faz parte, é o Franco CFA.
Esta moeda, que abrange duas geografias, central e ocidental africanas, tem sido das mais estáveis em África porque mantém uma paridade permanente com o Euro, com o seu valor garantido pelo Tesouro da República Francesa, o que dá a Paris uma capacidade de influência e pressão sobre a governação nestes países que muitos consideram asfixiante, tanto politica como economicamente, embora o objectivo inicial tenha sido a estabilidade da moeda.
Esta moeda foi criada ainda no período colonial, em 1945, tendo, depois, sido continuada, agregando outros países, como a Guiné-Bissau ou a Guiné-Equatorial, o Togo e os Camarões, o que levou, ao longo dos anos, muitos analistas a considerarem que foi a forma mais eficaz de Paris manter uma influência efectiva de pendor neocolonial sobre estes países.
Alguns analistas admitem mesmo que estes movimentos antifranceses que surgiram, quase ao mesmo tempo, no Mali, no Burquina Faso, na RCA, na República da Guiné, mas com sinais de extensão ao Chade, Níger, entre outros, são fruto de uma estratégia definida em concomitância com Moscovo, como, alias, o Presidente francês, Emmanuel Macron, insinuou claramente ao pedir a Ibrahim Traoré para não se deixar ir na cantiga dos "amigos russos".
Seja como for, a verdade é que a questão do radicalismo islâmico é um dos argumentos mais usados pelos governos em questão, quase todos eles, especialmente o Mali e o Burquina, mergulhados em violência jihadista sem fim à vista, tendo o contingente internacional liderado pela França, com apoio das Nações Unidas, falhado rotundamente no combate a esta vaga terrorista que já fez dezenas de milhares de mortos e milhões de deslocados.
Dos mais de cinco mil militares franceses colocados no terreno, já quase todos deixaram de actuar, especialmente no Mali e na RCA, tendo agora sofrido mais um rude golpe no Burquina, estando praticamente congelada a acção deste contingente, ao mesmo tempo que cresce em profundida a influência político-económica de Moscovo, bem como do seu braço militarizado do Grupo Wagner, para já com resultados palpáveis em Bangui, sendo que no Mali verifica-se uma redução da acção jihadista, embora isso não seja visível de igual modo no norte burquinense.
Depois de décadas pós-colonial a manter uma influência pesada na economia e na política das suas antigas colónias, a França está hoje claramente a assistir à diluição dessa influência, não havendo, para já, uma reacção clara de Paris a essa perda estratégica, que está ligada notoriamente ao que se passa no leste da Europa, onde Paris é um dos mais importantes apoios da Ucrânia na guerra com a Rússia.
África é, claramente, um dos palcos mais salientes da luta entre os gigantes do mundo pela defesa ou criação de uma nova ordem mundial, com EUA e aliados ocidentais a tentarem consolidar a "sua" ordem mundial com base em regras saídas da II Guerra Mundial, e do outro Rússia, China, e com o apoio tácito da Índia, África do Sul, entre outros, na procura de uma nova ordem planetária erguida sob os alicerces da cooperação inter pares sob o azimute das relações mutuamente vantajosas.
A França é, mais que nenhuma outra potência ocidental, para já, a maior vítima desta luta de titãs, com perda evidente de "territórios" de influência estratégica prioritária e, ouvido pela AFP, Gilles Yabi, fundador do think thank senegalês WATHI, "existe um desejo nas sociedades africanas de entrarem numa fase de uma segunda independência".
Como recorda a AfricaNews, a presença francesa nesta região "CFA" ainda tem peso e influência em países como a Costa do Marfim, Senegal, Níger e Chade, embora o "cimento" político e económico históricos esteja a ganhar frestas cada vez mais visíveis um pouco por todo o lado.