Quando Ibrahim Traoré nasceu, em Março de 1988, em Kerá, Bondokuy, na província burkinabe de Mouhoun, cumpria-se o quinto mês do golpe contra Thomas Sankara e seu assassinato pelo seu braço-direito, Blaise Campaore, apoiado pela França.

Sankara e Campaore estiveram juntos no quarto golpe de Estado do país, em 1983. Derrubaram Jean Baptiste Ouédraogo. E, nesse ano, começa a curta revolução panafricanista. Sankara, jovem de 34 anos, tenta convencer os líderes continentais a lutarem pela dignidade dos africanos.

Olhando para as desigualdades em África, o então jovem líder do Burkina Faso, na OUA, diz aos seus colegas presidentes, bem mais velhos que ele: "temos de escolher entre o champanhe para alguns e a água potável para todos".

Quando Traoré nasceu, os ainda presidentes Theodoro Obiang (hoje com 83 anos) e Dennis Sassou Nguesso (81 anos) já tinham 11 anos na liderança da Guiné Equatorial e do Congo-Brazzaville, respectivamente. Paul Biya (actualmente com 92 anos) estava no sexto ano de presidência dos Camarões.

A Namíbia ainda estava sob o jugo do regime racista da África do Sul e o Apartheid era uma realidade hedionda no país de Mandela. Este cumpria um quarto de século nas masmorras do regime segregacionista. Angola lutava pela sua soberania e, apoiando a SWAPO e o ANC, pela libertação da África Austral.

Os cubanos ajudavam as "gloriosas FAPLA". Moçambique, Tanzânia, Botswana, Zimbabwe e Zâmbia, apoiavam material, financeira e politicamente os movimentos de libertação da África Austral.

Dois anos depois, Mandela é liberto. A Namíbia, dirigida pela SWAPO, alcança a Independência. E a libertação política do continente fica completa. Faltando apenas a solução do problema do Sahara Ocidental.

A URSS perde a Guerra-Fria. O Muro de Berlim cai. África adopta o multipartidarismo e supostos regimes democráticos. Para seu gáudio, as potências ocidentais encontram nesse "novo" modelo uma forma camuflada de continuar a controlar África, no geral. De ajudar a colocar no poder os seus "apaniguados", sem entrar em guerra. Bastando apoiar e/ou promover a fraude política.

Porque o segredo continua a ser a alma do negócio, apoiaram a instalação de regimes maioritariamente presidencialistas e hiper-presidencialistas. Com isso, evitam a dispersão de contactos na negociação pela efectivação da fraude.

Os hiper-presidentes passaram a fazer das suas "vitórias", sempre absolutas, o meio de exclusão de outros, mesmo que sociologicamente maioritários. Ganham eles e perde tudo o resto. Sobretudo a dignidade e a soberania dos povos.

Mais de 30 anos depois do advento da "democracia", o retrato do continente continua desolador, com muita pobreza e instabilidade política à mistura. África continua a enriquecer outros e a exportar matérias-primas que deviam ser transformadas localmente.

Ainda não se consegue "produzir em África, transformar em África e consumir em África, de acordo com Sankara que, no discurso contra o pagamento da dívida externa africana exortava: "vamos produzir o que nos falta, e consumir a nossa produção, em vez de importar tudo".

Neste cenário de simulacro de democracia africana, aos 34 anos, em Setembro de 2022, num país com mais de 40% da população a viver abaixo do limiar da pobreza, Ibrahim Traoré, antigo membro da Associação Nacional dos Estudantes do Burkina (ANEB), organização de matriz marxista, dá um golpe de Estado e derruba Paul-Henri Damiba.

Põe fim ao curto mandato de Damiba, que nove meses antes, com a sua ajuda, golpeara o Presidente Roch Marc Kaboré, eleito em 2015, depois de uma revolta popular que forçou a renúncia de Blaise Campaore e travou a alteração da Constituição e um quinto mandato para o assassino de Sankara.

Desde o golpe, Traoré, apoiado pela Rússia, tem mostrando ao mundo o seu perfil político. Escolheu a sua primeira participação na cimeira Rússia-África, no verão de 2023, para dizer aos seus colegas chefes de Estado africanos: "devemos parar de nos comportar como marionetes que dançam sempre que os imperialistas puxam os cordelinhos".

E indignado, em nome dos jovens africanos, adianta, "a minha geração não consegue entender como é que África com tanta riqueza no seu subsolo, com natureza generosa, água e sol abundantes é hoje o continente mais pobre".

"Como os chefes de estados africanos viajam pelo mundo de mão estendida a pedir esmolas? Interroga-se o jovem herdeiro político de Thomas Sankara.

Indo ao encontro dos seus ideais políticos, expulsa as tropas francesas. Confia aos burkinabes a defesa do próprio país. Com os líderes das juntas militares do Mali e do Níger, generais Assimi Goita e Abdourahamane Tchiani, faz parte do lançamento de um projecto de integração africana contra o neocolonialismo e o colonialismo financeiro franceses.

Os três abandonam a CEDEAO agastados com as sanções da organização regional contra os seus países. Formam a Aliança dos Estados do Sahel (AES), um pacto político-militar. Fundam o Banco Confederado para Investimento e Desenvolvimento, antecâmara da criação de uma moeda única dos três países e saída do Franco CFA, moeda colonial imprensa e gerida pela França.

Em busca de soberania alimentar, Traoré desencadeia uma reforma agrícola. Aumenta a produção de produtos agrícolas da cesta básica, bem como do ouro que representa 70% das vendas ao exterior. Aposta na reindustrialização e incrementa as exportações.

De acordo com dados do Banco Mundial (2024), o PIB do Burkina Faso, impulsionado pelos sectores da agricultura e serviços, subiu 4%. O défice orçamental passou de 6,5% para 5,6% do PIB. A pobreza extrema caiu 1,8 pp, ficando-se nos 24,9%.

Num continente onde grande parte dos regimes mais se assemelham a ditaduras eleitorais, sem liberdade e dignidade das populações, potências ocidentais como a França e os EUA estão no encalço de Traoré, a quem acusam de ser ditador e de usar os recursos do seu país para se manter no Poder.

A braços com o jihadismo, Traoré, que já sofreu mais de uma dezena de tentativas de assassinato, responde sem medo e honestamente: "nós estamos a fazer uma revolução. Não estamos a construir democracia".

Diz isso, olhando para "democracias" africanas, onde "vencedores" assumem o poder, independentemente da vontade popular, mas com aprovação ocidental. Tomam posse muitas vezes cobertos por um manto encharcado de sangue de centenas ou milhares de opositores assassinados.

Os ocidentais, que deixaram de ter facilidades em abocanhar as riquezas do Burkina, tentam afastá-lo do poder. Mas os africanos no continente e da Diáspora já perceberam que democracia sem liberdade nem dignidade, significa políticos africanos manietados por potências mundiais para defenderem interesses externos, sobretudo ligados à indústria extrativista.

Ameaças ocidentais que mobilizaram o Mundo. Os africanos. E também os amigos de África. Em Paris, Londres, Berlim, Nairobi ou Ouagadougou. A 30 de Abril, milhares saíram à rua para manifestar apoio ao novo Sankara, transformado no símbolo da esperança de um continente que luta pela sua própria dignificação.

Pela integração e contra a miséria e convencidos de que tocar em Ibrahim Traoré significa travar essa revolução, por África para África e pelos africanos, num movimento mundial nunca visto, saíram e denunciaram o plano ocidental.

Os africanos e amigos de África encheram as ruas para exigir respeito pelas suas soberanas escolhas. Pelo direito a acertar ou errar soberanamente sem interferência, como acontece com países como os EUA.

Saíram porque sabem que travar a eliminação de Traoré é também evitar que a namibiana Netumbo Nandi-Ndaitwah e outros líderes panafricanistas sejam as próximas vítimas de uma fúria imperialista que se recusa a aceitar a mudança do centro de gravidade do mundo para o Sul global.

Neste contexto, vários líderes como John Mahama, do Gana, país vanguarda do panafricanismo, Bassirou Faye, do Senegal e o Rei Mohamed VI, de Marrocos (que há dias recebeu em audiência conjunta os ministros dos Negócios Estrangeiros dos países do AES), vão mostrando apoio aos golpistas ostracizados pelas chefias da OUA e da CEDEAO.

Traoré quer levar a transição até 2029. Até lá, espera-se que consiga resistir às investidas ocidentais e consolidar as bases para transformar o Burkina Faso num emblema pela liberdade e dignidade dos povos burkinabe e africanos.